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Fonte de Sergio Conde Caldas

Pós pandemia, as mudanças no morar

“Fique em casa.” Desde março, quando a epidemia de Covid-19 chegou ao Brasil, a frase tem sido repetida à exaustão. O isolamento social aumentou a permanência das famílias no lar e provocou mudanças no mercado imobiliário. O arquiteto e urbanista Sergio Conde Caldas desenha nesta entrevista algumas das novas tendências, como a criação de espaços de trabalho isolados da balbúrdia familiar e o êxodo de parte da população para áreas mais verdes no entorno das grandes metrópoles. Já os novos projetos empresariais pedem ambientes menores e ênfase na sustentabilidade. Fundador da Opy Soluções Urbanas e vencedor de vários prêmios de arquitetura, como o International Architeture Awards, o carioca de 48 anos aposta no sucesso de apartamentos pequenos e bem planejados, que poderão atrair novos moradores para bairros degradados, e prevê que as próximas gerações terão pouco interesse em adquirir imóveis. “O jovem não vai mais se endividar para comprar um apartamento. Vai investir nele mesmo”, acredita.

Sérgio, o que mudou na sua vida pessoal e profissional, durante a pandemia?

No âmbito pessoal, com as crianças em casa, o núcleo familiar ficou muito mais integrado. Todos se apoiaram, queriam saber dos problemas dos outros, ficaram mais abertos e solícitos. Profissionalmente, fui obrigado a fortalecer o lado comercial. Acho que todo mundo teve que se reinventar de alguma forma. Fomos atrás de trabalho mesmo. O início da pandemia foi um pânico para todo mundo. O que eu queria saber era se os meus contratos iriam seguir, porque a primeira coisa que as pessoas fizeram foi pegar o telefone e dizer “vamos dar uma parada”. Foi algo meio assustador. No primeiro momento aconteceu muito isso. Logo depois, as pessoas começaram a entender como lidar.

A crise deixou lições?

A pandemia foi um momento de reflexão para a população mundial. Acho que teremos uma evolução, como tivemos após as guerras. A pandemia gerou uma aceleração do que já imaginávamos para o futuro e a percepção de que há outras maneiras de morar, viver, trabalhar. A pandemia nos mostrou que a mobilidade pode ser uma opção. Eu fico pensando: “Quem é que vai pegar uma ponte aérea para São Paulo para fazer apenas uma reunião de trabalho?” É um ganho de tempo e qualidade de vida muito grande. Sem precisar se locomover diariamente, é possível morar mais barato, num lugar melhor. Se hoje você consegue ter um espaço para trabalhar e para seus filhos estudarem, pode morar em qualquer lugar do mundo.

Que outras mudanças você vê no âmbito da moradia?

O jovem não vai mais se endividar para comprar um apartamento. O jovem vai investir nele mesmo. Ele não vai se endividar para ter uma casa, mas para fazer um negócio, ser empreendedor. E vai morar de aluguel. É uma mudança de comportamento que vem ocorrendo muito rapidamente. Foi o que ocorreu em relação ao carro, com o surgimento do Uber e outros serviços. O apartamento vai ser uma coisa leve. Eu acho que a nossa cultura patrimonialista vai mudar radicalmente no Brasil.  Patrimonialistas serão os investidores, os fundos familiares, que vão buscar rentabilidade garantida, acima da média, porque o imóvel não cai 30% em um dia. Pode ser um pequeno investidor, que vai comprar uma unidade, pode ser um médio investidor, que vai comprar dez unidades. Estou fazendo vários projetos com apartamentos de 29 a 48 metros quadrados. Esses projetos têm uma arquitetura bacana. São pequenos, pensados para um short stay ou long stay e moradia. Acho que tem tudo para ser um sucesso. O déficit habitacional no Brasil é gigantesco. Em um bairro próximo ao Centro do Rio, vamos vender apartamentos mais baratos do que os do ‘Minha Casa, Minha Vida’, num predinho bacana. A pessoa pode morar o ano inteiro lá e, quando tirar férias, deixar o apartamento ser alugado pelo pool. Tudo programado por aplicativo. Temos parcerias com aplicativos de moradia e com empresas que, por exemplo, montam uma lavanderia no prédio, com um lounge para a pessoa ficar esperando a roupa ser lavada enquanto se entretém conversando, lendo.

Mas também houve um aumento na demanda de casas devido à pandemia?

É muito caro morar bem. Tem gente que mora mal e paga caro, essa é a verdade. No caso do Rio, em um bairro nobre como o Leblon, todos os prédios são colados, tem quarto virado para o prisma [espaço interno da edificação], o quarto dos fundos é virado para o outro prédio. Podem estar bem decorados e ter uma arquitetura incrível, mesmo assim não dá para comparar com uma casa de quartos amplos, virados para o verde. A demanda por casas tem aumentado, o que não acontecia há décadas. Ninguém mais queria saber de casa, nem de veraneio. Os clientes preferiam comprar apartamento em Portugal, em Londres, em Nova York. Agora, todo mundo ficou desesperado, querendo alugar. O mercado de aluguel de casas nas regiões de serras e praias se multiplicou. Várias pessoas já pensam em construir suas casas nesses locais fora das grandes cidades, onde a pessoa pode morar em um terreno de 2.500, 5.000 metros, com vista para o céu, natureza … Dá para colocar fibra ótica e internet. As pessoas pensam: por que morar numa cidade grande? Essas pessoas vão preferir ter só um apartamento compacto na cidade.

Há uma preferência por prédios sustentáveis, com energia solar, tratamento de efluentes, aproveitamento de águas de chuva?

Sim, e não só por consciência ambiental. Se você pensar em sustentabilidade, está pensando em eficiência energética. É possível ter o mesmo conforto com um consumo menor. Quando você consome menos, gasta menos. Esse investimento é atraente quando há um único dono do prédio, como nos prédios corporativos. Em incorporações, é mais raro, mas também é uma tendência.

Você tem experiência em projetos sustentáveis, certo?

Fizemos um projetinho há dez anos, aqui no Rio, de um condomínio na serra fluminense, o Terras Altas, com uma certificação super rígida. Foram quatro casas, que demandaram tanto trabalho quanto um edifício corporativo. Fizemos tudo em estrutura metálica, só tivemos concretagem na fundação. A estrutura metálica, de aço, é reutilizável. O tijolo era só no cimento, não era cerâmico. Não ia ao forno, era prensado como se fosse um lego. A madeira era certificada. Telhado verde, captação de água de chuva, de água cinza do telhado verde para as descargas, aquecimento solar. Foi bem completo. Um grande aprendizado. Atualmente, estou fazendo um projeto em parceria com o Miguel Pinto Guimarães, na [praia do] Preá, no Ceará, que tem dimensão de projeto urbano: tem moradia, hotel, escola, comércio.  Mas é revolucionário por ser totalmente sustentável, pensado com base no conceito de eficiência energética e com os princípios materiais de baixa emissão de carbono na construção.

Em termos urbanísticos, você também espera mudanças?

Eu penso que o Brasil, onde foi tudo feito pela costa e em megacidades tende a se desenvolver de uma maneira mais sustentável, criando novos núcleos de centralidades nas metrópoles e fora delas. Na periferia do Rio, por exemplo, pessoas moram muito mal, perdem horas em deslocamentos, enquanto há bairros da zona norte, principalmente, com a densidade baixíssima onde ninguém quer morar, mesmo com o transporte. É possível morar num bairro como São Cristóvão, servido pelo metrô e próximo do Centro, pelo mesmo preço que se pagaria em um desses bairros distantes. Bairros como o Centro, São Cristóvão, Cidade Nova, Catete e Glória perderam densidade, a renda caiu e se degradaram. Agora, imagino que estejamos no final desse ciclo. Vai haver uma migração para o Centro, quando nós vamos virar uma cidade de verdade, porque cidade de verdade deve ter um centro bom. Os do Rio e de São Paulo estão cada vez piores.

Você percebe uma valorização dos imóveis apesar da crise da pandemia?

O setor imobiliário foi bem, mesmo na crise, pois a percepção da solidez do imóvel ainda é muito forte. E a taxa de juros, a mais baixa que já tivemos, representou um fomento gigantesco para o mercado. A demanda por residências, no Brasil, é infinita. Nosso déficit habitacional é gigantesco. Sem falar das pessoas que moram muito mal, nos bairros mais periféricos, e a tendência de haver um êxodo para a centralidade, como comentei antes.  As pessoas vão querer sair de longe e ficar perto do Centro. Um exemplo de bairro que se desenvolveu é Botafogo. Foi o único bairro da zona sul do Rio de Janeiro que se qualificou nos últimos dez anos. Isso aconteceu porque muita gente que queria morar na zona sul passou a vê-lo como opção. Os condomínios, os edifícios e empreendimentos que foram feitos tinham qualidade, isso aumentou a renda do bairro e o bairro entregou os serviços. Virou um bairro cool, tem um comércio bacana, muitos bares, vida noturna. Os melhores restaurantes do Rio estão em Botafogo. Essa qualificação positiva está diretamente ligada à densidade da população. A visão de que a densidade é ruim é um engano. É só ver a Barra da Tijuca. Lá a renda é altíssima, mas a densidade é tão baixa que você não consegue andar na rua. Em razão disso, você cria minicidades falsas em condomínios que querem ser cidade sem ser.

Botafogo era um bairro onde havia muitas casas. As casas se foram, muitas delas, históricas. A perda do patrimônio histórico é o preço a se pagar?

Eu faço vários projetos de restauro e retrofit, ou reconversão. O patrimônio da zona sul do Rio de Janeiro foi preservado com a criação das Apacs [Área de Proteção do Ambiente Cultural] a partir de 2001. O que tem qualidade e gera uma ambiência característica está protegido. E hoje você vê projetos bem interessantes de reconversão. Se você considerar a alta restrição de uso de Santa Teresa, por exemplo, entende como o bairro fica absolutamente degradado, piora a cada ano. Aquilo era para ter galerias de arte, escritórios de arquitetura… Tinha de ter uso comercial misto. Mas em quase todas as áreas só é permitido o uso residencial. A rua movimentada, com gente, com comércio, gera segurança. Na Dias Ferreira, por exemplo, não podia restaurante até dois anos atrás. Os alvarás eram concedidos para outras atividades, mas a demanda por restaurantes era gigantesca. Tanto é que hoje a rua inteira tem restaurantes, e é a rua mais valorizada do Leblon. Com esse tipo de restrição excessiva, bons projetos, que podem ter efeito positivo para a cidade, acabam se perdendo.

Você falou do fortalecimento do centro do Rio. E a região portuária?

Está muito difícil desenvolver projetos no Porto. Nós perdemos a oportunidade de colocar ali a Vila Olímpica. Acho que esse foi um grande erro. O projeto de desenvolvimento da Região Portuária destinou a área às grandes empresas. Mas o Rio é totalmente dependente das nossas commodities, que tiveram forte queda com o revés do petróleo e do gás. Hoje há milhares de metros quadrados corporativos em prédios novos não ocupados. Ao mesmo tempo, é caro fazer um desenvolvimento imobiliário de residências no Porto. Aumentar a densidade, trazer pessoas, sempre qualifica o ambiente urbano. Em qualquer lugar do mundo, o melhor lugar para se morar é o centro da cidade.  Já o Centro do Rio praticamente não tem moradia. No entanto, ali poderia haver desde moradia social até empreendimentos de alto padrão. Mas é preciso planejamento, o que leva tempo, e também é preciso criar subsídios para isso acontecer. A habitação social é sempre um dilema. Normalmente são projetos terríveis, distantes do centro, repetitivos, que depois se degradam.

E o setor hoteleiro, também está mudando após o impacto da pandemia?  

Os hotéis terão de se reinventar, porque a sua operação é muito cara. A tendência é que utilizem serviços por aplicativos, terceirizados. Por exemplo: no hotel vai ter um mercadinho com uma geladeira, onde o hóspede poderá pegar uma garrafa de vinho através do aplicativo. Ele vai receber uma senha, digitar e pegar a garrafa, que irá para a conta dele. É muito mais legal ficar num apartamentinho do que ficar no quarto de hotel. Então o hotel tem que ficar com mais cara de apartamento, só que para locação. Mas continuar hotel. Manter serviços, como arrumação, mas por demanda. Essa é a grande transformação.

Com o hábito de trabalhar de casa, o projeto das moradias vai ter de prever um lugar específico para trabalhar?  

Todo projeto de casa que estou fazendo tem home office. E o home office é um lugar fechado. Não é mais aquele lugar integrado, onde se trabalhava vendo a baguncinha da casa. Não dá para fazer um Zoom com a criança berrando do lado. São espaços fechados, de preferência integrados visualmente, mas onde se consegue falar à vontade. Nas empresas, estamos criando espaços para reuniões individuais. Sala de reunião para 50 pessoas, por exemplo, não existe mais. Nunca funcionou, na verdade. Tem modificações claras de comportamento corporativo, assim como na moradia.

E os coworkings, espaços compartilhados de trabalho, seguirão atraindo usuários?

Eu acho que tudo que é compartilhado vai continuar crescendo. A lógica do compartilhamento é muito inteligente. Você está economizando dinheiro e qualificando serviço. Não tem como não dar certo. A habitação vai ter isso. No futuro as pessoas vão ficar mais menos preocupadas se o carro é alugado, o apartamento é alugado, principalmente o público jovem. A quantidade de gente em trabalho informal é gigantesca. A pessoa que não tem comprovação de renda para comprar um apartamento precisa pegar um financiamento com uma taxa muito mais alta do que o outro que está num emprego estável. É claro que, na verdade, é preciso criar novas possibilidades para quem tem o dinheiro, mas não consegue o crédito.

Na sua opinião, depois da pandemia, os comportamentos que estão levando a essas mudanças não podem retroceder?  

Não, até porque essas demandas já existiam. O comportamento, especialmente dos jovens, já estava mudando muito rapidamente por causa da tecnologia. Meu sonho, quando eu era moleque, era ter um carro. Eu comprava aquela revista Quatro Rodas para ficar sonhando. Os jovens não têm o menor interesse nisso. Eles vão usar esse dinheiro do carro para uma coisa muito mais produtiva e tendem a fazer a mesma coisa com o apartamento. Não é uma transição rápida, evidentemente, é gradativa.

E quanto aos mais velhos? A população brasileira está envelhecendo, essa questão começa a influir também nos espaços de moradia?

As pessoas hoje vivem mais e muitas vezes sofrem com problemas de mobilidade. Essa demanda vai existir e hoje não há um serviço especializado nisso. Exige um conhecimento e pesquisa maiores, mas eu vejo que isso vai acontecer naturalmente pela demanda. Certamente virão projetos com essa característica. O mobiliário tem de ter mais firmeza, o piso deve ser antiderrapante, o banheiro precisa ter onde segurar. São muitas as mudanças para atender a esse público crescente.

Mudando um pouco o tema, vimos que seu escritório apoia o desenvolvimento de projetos para dar autonomia a pessoas especiais, como portadores da síndrome de Down. Como estão esses projetos?

O gol é conseguirmos fazer um projeto imobiliário onde possamos colocar essas pessoas morando bem, próximas dos familiares, mas com autonomia. Nós trabalhamos com uma ONG, o Instituto JNG, para tentar viabilizar essa proposta. Já fizemos vários estudos. Não é fácil, porque, o solo é muito caro no Rio e essa é uma restrição enorme.

Como vê o papel da arquitetura nesse mundo em transformação? Como ela pode contribuir para construirmos uma vida mais harmônica neste mundo que muda tanto, tão rapidamente?

A arquitetura e o urbanismo são grandes transformadores na vivência das pessoas. Os parques, a qualidade da moradia, a acessibilidade, a mobilidade urbana, o transporte público de qualidade com estações acessíveis… Como você consegue manter qualidade de paisagem e, ao mesmo tempo, gerar desenvolvimento? Em várias cidades brasileiras, como o Rio, temos um potencial enorme. Em que lugar eu posso sair da minha casa e em uma hora de caminhada tomar um banho de cachoeira, como faço sempre? Não é possível que a cidade não possa gerar riqueza para manter esse patrimônio. Acho que temos muito a aprender e dilemas a enfrentar nessas transformações. Precisamos estar abertos a discutir e nos colocarmos nos sapatos dos outros.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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