A carioca Gladis Brun é uma pioneira da terapia de família no Brasil. Durante sua formação como psicóloga e terapeuta, fez parte de um grupo de psicanalistas na Argentina, dedicado às relações familiares. Em 1975 atendeu ao primeiro casal. Desde então, acompanhou do seu consultório as grandes mudanças que se deram na sociedade, como a chegada do divórcio, o enfraquecimento do modelo patriarcal e a popularização dos novos modelos de família. Em casa, em razão da pandemia do Covid-19, Gladis continua a atuar como terapeuta, acompanhando, em sessões pela internet, os que sofrem os efeitos do isolamento social. Enquanto isso, ela também padece com a distância dos amigos e netos. Autora de livros como Bem-Me-Quer, Mal-Me-Quer: Retratos do Divórcio e Pais, Filhos e Cia Ilimitada (ambos da Record) e premiada pela Academia Americana de Terapia de Família (AFTA), a terapeuta alerta para os conflitos que derivam da falta – ou do excesso – da presença do outro: “O equilíbrio se perdeu. Os nervos estão à flor da pele”.
Como a pandemia está afetando as relações familiares e a saúde mental?
Os sentimentos estão muito exacerbados. O medo permeia todas as áreas, desde o terror ao contágio à intensa insegurança econômica. Nós, aqueles que estamos sozinhos, sentimos a falta do contato físico. Já os que estão acompanhados começam a sentir o peso do excesso do outro. A permanência dessa situação nova, sem intervalos, desgasta as relações. Então, vivemos um excesso de falta ou um excesso de presença. O equilíbrio presença/ausência, tão necessário, se perdeu. Ficamos entregues aos recursos permitidos, enfrentando nossas faltas e tendo de administrar as demandas daqueles que são mais dependentes. Isso gera tristeza e, muitas vezes, ressentimento. Os nervos estão à flor da pele. Ontem, por exemplo, houve uma briga seríssima, nunca vista aqui no meu prédio, que é muito tranquilo, por causa de um cachorro que está latindo muito.
No caso de quem está confinado com a família, o que está causando essa exacerbação?
Nós estamos acostumados a fazer muitas atividades, que diluem um pouco o que demandamos dos familiares e parceiros. Temos a amiga com quem almoçamos; a butique onde compramos uma roupa e conversamos com a vendedora; o motorista do táxi; as nossas relações de amizade. Essas redes nos possibilitam administrar esses sentimentos contraditórios. E elas não estão mais disponíveis. Não há essa diluição. Por outro lado, atribuímos ao outro o papel de nos socorrer. E, de repente, essa pessoa também está tendo a sensação de ser invadida. Eu tenho um paciente, por exemplo, que está com muita dificuldade de fazer terapia, porque está se sentindo absolutamente invadido. Nem todas as casas têm muitos espaços. Todo ser humano tem necessidade de ter um espaço seu. E isso é impossível quando você é obrigado a ficar no mesmo lugar.
No caso dos casais, a rotina de trabalhos domésticos têm sido motivo de conflito?
Na nossa cultura, a mulher é mais encarregada das tarefas domésticas, mesmo que ela seja uma profissional. Quando essa rotina de fazer cama, fazer comida, atender filhos tem de ser distribuída, alguns homens aceitam com mais facilidade; outros, quase tem de ser convocados a chicotada. Tudo isso vai criando um ambiente de desarmonia e de desamparo. Mesmo quando não tem briga, o casal se torna mais companheiro do que amoroso. Outra fonte de frustração vem das expectativas que construímos em relação aos parceiros. Nós temos a necessidade de criar uma fronteira e, às vezes, o outro entende esse comportamento como rejeição. Isso está dando muita confusão. Acho que essa é a grande ameaça dessa pandemia: a generosidade vai encolhendo. A generosidade necessária para olhar o outro genuinamente como outro, e não como um prolongamento de si. Uma pessoa que é, de fato, um estrangeiro – a gente é que inventa que é alma gêmea. A gente precisa sentir falta, falta da presença. Saudade é uma palavra maravilhosa. Quando não temos espaço para sentir falta, fica complicado. Quando você só tem presença, presença, presença e nunca ausência, acaba cruzando limites.
A presença contínua também é uma falta?
É, porque impede aquele intervalo necessário que lhe permite estar presente com você mesmo.
Qual é a situação menos desamparada? Estar sozinha ou ser invadida pela presença constante de outros e não conseguir encontrar seu espaço de intimidade?
Estamos em contato com desamparo tanto na ausência quanto no excesso da presença. Tem momentos em que a expectativa se torna muito distante da realidade. É aí que surge o perigo da frustração se somar ao stress e gerar reações agressivas ou até mesmo violentas. Quanto menos recursos para lidar com essas frustrações inevitáveis, mais perto ficamos dos desastres. Então surgem as ações mais violentas, alimentadas pela falta de outros recursos mais conhecidos. É fundamental entrar em contato com novas formas de enfrentar as inevitáveis frustrações.
Será que esse período de isolamento pode transformar as relações em família?
Eu acho que todos nós vamos sair muito diferentes dessa pandemia. Esse estresse que estamos sendo obrigados a passar faz com que a gente se pergunte: “Qual foi a vida que eu escolhi ter? Qual foi o casamento que eu escolhi ter? Qual foi a forma de maternidade que eu escolhi ter, a forma de ser profissional que eu escolhi ter? E o que eu posso fazer sobre isso?”. Todos somos coautores das nossas vidas.
É preciso encontrar novas soluções?
Eu atendo um casal que acho muito interessante, muito inteligente. Eles estão aprendendo que se gostam, querem continuar juntos, mas terão de construir espaços diferentes para morar. Estão quebrando uma parede e vão fazer um quarto e um estúdio para um cada um. Estão criando um espaçamento, que não tem a ver com separação, mas com fronteira. É diferente do desenho de casal habitual: esse negócio de ter de dormir todo dia na mesma cama, na mesma hora. É bem interessante, isso. É um desenho que prevê espaço para o eu, o outro e o nós.
Alguns analistas acreditam que a crise da Covid-19 está ensinando algumas lições à humanidade. Uma delas é a importância da coletividade. A outra, a própria valorização da vida. Você concorda com essas observações?
Concordo que isso tudo vai estar presente. Mas também estarão presentes outros sentimentos não tão bons: ressentimentos, cobranças. Está tudo contido, como numa panela de pressão. Depois a gente vai ver qual será a saída, mas não será uma volta ao normal, ao conhecido. Já dá para perceber que alguma coisa mudou.
Muita gente está vivendo seu cotidiano, em grande parte, dentro da internet; vivendo as relações, inclusive as afetivas, no espaço virtual. Qual é o impacto disso? Se, por um lado, isso nos mantém conectados, não acaba fazendo com que cada um fique cada vez mais na sua tela?
Cada um fica no seu autismo, inventando um mundo. Ao mesmo tempo, a gente precisa do outro. O relacionamento virtual pode nos atender por um determinado tempo: ouvimos a voz, vemos a imagem. Mas falta a concretude, o tato. Nada substitui a concretude da minha temperatura sentida pelo outro.
Tocar o interlocutor é um hábito bem brasileiro: vamos logo abraçando, dando beijo em pessoas que acabamos de conhecer. Você acha que isso pode mudar?
Não vai mudar de hoje para amanhã, vai ser uma mudança paulatina. Vão mudar os hábitos, as expectativas, o que é educado, o que que não é educado. Todos nós vamos pagar um preço, não voltaremos a ser o que éramos. Nossa espontaneidade, nossos abraços, não serão olhados como antes.
Será que alguma coisa boa vai resultar deste momento?
Acredito que sim. Nós já vivemos momentos ruins, difíceis, e nos construímos como pessoas alegres, criativas e que ajudam o outro. Temos de nos acostumar com a ideia de que vai ser diferente e que, no contexto dessa diferença, vamos aprender o que queremos e o que não queremos.
Você falou da questão do contato físico. O que mais pode ser diferente pós pandemia?
Estamos aprendendo o quanto a gente precisa da ausência do outro para poder aproveitar a sua presença. E também o quanto maltratamos esse outro quando mais precisamos dele. Questões como essas, que têm a ver com a intimidade, vão estar em pauta e precisarão ser repensadas. Nós, terapeutas, por exemplo, estamos conversando muito sobre como o fato do analisando saber que o terapeuta também está em isolamento, também está confinado e com medo, afeta a análise. Não tem tanta fantasia: o paciente sabe que o analista, da mesma forma que ele, está preso dentro de casa e submetido às mesmas leis.
As sessões por telefone ou por zoom nem sempre são iguais às presenciais. O telefone toca, a campainha chama …
É, o espaço sempre corre o risco de ser invadido. Em uma sessão de terapia com uma paciente, de repente ela me disse: “Espera um instantinho, Gladis”. E aí ela foi pé ante pé, devagarzinho e abriu a porta rapidamente para ver se tinha alguém da família escutando. Olha que coisa!
Na nossa sociedade, os pais costumam se desdobrar para antecipar todas as necessidades dos filhos e não deixar que eles sofram com frustrações. Será que agora, experimentando novos limites e demandas, esses jovens e crianças serão obrigados a amadurecer?
Na nossa época, temos vivido esse mantra: as crianças serão protegidas pelos pais; a distância do filho com o pai vai ser rompida; o pai tem de proteger… Mas palavras como amadurecimento tem um peso. Eu prefiro pensar em diferença. Vai ter diferença na forma de pensar os limites que podemos dar para que os filhos não nos atropelem. Acho que vamos conviver com novas exigências. Eu não acho que uma pandemia é diferente de uma guerra. Teremos muita aprendizagem. O lugar de pai e de mãe talvez tenha ganho uma dimensão excessiva na nossa cultura. Os adultos protegem as crianças, mas ficam exaustos, sentem falta de momentos sozinhos. Sobre o trabalho doméstico, antes da pandemia eu já sentia que havia uma mudança em curso. Minha neta que mora no Canadá, quando pequenininha já sabia se vestir, tirava o casaco, sabia onde tinha de pendurar. Já os meus netos do Brasil, quando a gente dizia: “Vamos sair”, estendiam o pé para botarmos o sapato. Isso eu acho que vai mudar. Teremos modos diferentes de estar juntos socialmente e em casa também, porque se as pessoas vão trabalhar mais digitalmente e a casa vira home office, restaurante… Podemos garantir que o espaço digital vai ocupar um espaço muito maior do que ocupou até agora e, com isso, as relações profissionais também vão mudar. Eu, por exemplo, fantasio que muitos pacientes meus vão preferir fazer consulta por zoom ou por outras plataformas da internet. E que, uma vez ou outra, manterão a consulta presencial, mas não o tempo todo, porque a cidade machuca muito a gente.
Você mencionou antes que está passando esse período de distanciamento social sozinha. Como está lidando com isso?
Eu tenho muitas atividades: escrevo, atendo pacientes, converso com amigos. Tem dias em que vou dormir cansada… Tem outros dias em que eu falo para mim mesma: “Gente, é a minha loucura com a minha loucura e as quatro paredes”. É um momento de muita angústia, em que o medo está muito ativado. O medo é um mantra, o medo do contágio, o momento da solidão. A grande novidade desse momento, uma novidade triste, é o quanto o outro é visto como ameaçador. Um netinho é uma ameaça, porque pode chegar cheio de vírus.
Qual o seu conselho para sobreviver à pandemia?
É acreditar que o outro dia vai ser diferente e que com essa diferença vou aprender alguma coisa. Eu sempre acredito que vai acontecer algum movimento e que, nesse processo, a gente vai poder separar o joio do trigo. E acredito no coletivo também, no saber coletivo. Nós, nessa entrevista, somos um coletivo produzindo conhecimento. Quando sairmos daqui cada uma terá aprendido um pouquinho com a outra. Você sempre tem de aprender com o seu interlocutor. Você não sabe tudo. Mas a gente sempre exige mais do que o outro pode dar. Nesse momento, os casais que têm menos recursos para lidar com as frustrações podem se machucar muito. Precisamos aprender essa dança do não e do sim na vida. Criamos fronteiras para sobreviver psiquicamente – em um casamento, em uma amizade. Repensar as fronteiras é fundamental, e também manter os momentos de comemoração, de estar junto. Estamos circulando o tempo todo entre a solidão e a razão, o abandono e a privacidade. Nós oscilamos o tempo todo entre esses territórios. Essa dança, essa coreografia que vai se armando, é um desafio constante, que nunca vamos resolver, porque a gente está sempre querendo a plenitude.
Entrevista concedida a Anabela Paiva