Um dos efeitos colaterais da pandemia do Covid-19 é a transformação das escolas, acredita Patricia Konder Lins e Silva. Uma das diretoras da Escola Parque, na Zona Sul do Rio de Janeiro, a pedagoga carioca constata que a necessária transformação das instituições de ensino finalmente começou. “O vírus fez com que a humanidade acordasse”, diz, apostando que a adoção de plataformas online de aprendizado e o estabelecimento de novas relações entre alunos e professores vieram para ficar. Autora do livro Inteligência se aprende (Casa da Palavra, 2011), Patricia Konder prevê que nos próximos anos muitas escolas passarão a adotar um modelo híbrido de ensino, combinando aulas presenciais e remotas. Uma mudança que poderá anunciar transformações bem mais profundas, como a substituição do ensino de conteúdos pelo aprendizado a partir de problemas. Se a pandemia representou uma catástrofe para a maior parte das instituições públicas, no caso das escolas privadas, as mudanças ocorridas no ano de 2020 podem ser o anúncio de uma nova era na educação.
A pandemia acelerou um processo de transformação das escolas que já vinha em curso? Estamos assistindo ao nascimento da escola do século 21?
Exatamente. O vírus fez com que a humanidade acordasse. Foi preciso fazer em uma semana o que vinha sendo discutido há anos. Temos de pensar o que que é educar agora, o que que é a educação para o século 21. Certamente não será igual à que nós tivemos. É chato dizer isso, mas não vai ser aquela formação humanista, que eu prezo muito. Nós adoraríamos que nossos filhos tivessem uma formação igual à nossa, a gente sabe tanta coisa, mas não é o que as crianças vão precisar no futuro. O tempo dessa educação enciclopédica passou. Hoje todas as informações de que você precisa estão no Google – se você souber procurar. Então o que se precisa aprender é a saber procurar. É, realmente, uma mudança de paradigma. Vamos ter um período em que a educação vai patinar muito, porque nem vai preparar para o futuro, nem vai ser como a do passado, que ninguém mais tolera.
Qual seria esse novo paradigma? Do que as crianças vão precisar?
A escola vai ter de trabalhar outras competências e habilidades: pensar, raciocinar, analisar, sintetizar. Essa geração vai precisar resolver problemas. Não problemas de matemática, mas problemas da vida, em grupos na internet. Se você prestar atenção, os cientistas hoje em dia trabalham em grupos, em seus laboratórios e conectados pela internet. Yuval Harari diz que a escola de hoje é completamente obsoleta e eu concordo inteiramente. A gente está ensinando às crianças coisas de que eles não precisam.
Como seria um aprendizado baseado na solução de problemas?
O Problem-Based-Learning (PBL) começa com a divisão da sala em grupos. Os grupos podem resolver problemas diferentes ou abordar vários aspectos de um mesmo problema. A aprendizagem começa aí: é preciso refletir sobre como dividir um problema em outros menores e saber por onde começar. Pode-se, por exemplo, propor que a turma encontre soluções para desafios reais: como organizar a vacinação na pandemia? Ou, como organizar a volta à escola? Os alunos têm de buscar conhecimento científico, ir atrás das informações para responder a essas questões. É um processo longo, colaborativo, em que o professor atua como um facilitador. Por vezes, o problema pode não ter solução, ou a solução pensada pode criar um novo problema. Mas, nesse caso, o que importa para o educador é o quanto o aprendiz teve de pensar. Até onde avançou? Quantas ideias ele teve? A função da escola passa a ser a de incentivar a capacidade de raciocínio e a criatividade. Os conteúdos serão aprendidos à medida que forem necessários para resolver os problemas em pauta.
Você conhece algum exemplo de instituição que pratique esse método?
Tem várias, mas eu só visitei uma: o Illinois Mathematic and Science Academy, uma escola pública perto de Chicago onde todo o ensino é baseado na solução de problemas reais. Eu fiquei fascinada. E olha que isso foi no início dos anos 2000. No Brasil, uma outra metodologia está se tornando muito popular: o Project Based Learning, ou Aprendizado Baseado em Projetos. Neste modelo, os alunos desenvolvem um projeto com começo, meio e fim, que sempre resulta em um produto. É mais fácil para trabalhar com os alunos mais novos.
Como será essa escola em transformação, no futuro imediato?
Quando voltarmos às aulas, não vai ser a mesma coisa. Com certeza, nos primeiros tempos, teremos uma escola híbrida. A criança irá à escola duas ou três vezes por semana, para algumas atividades específicas, como frequentar laboratórios. Eu acho que nada vai substituir a ida ao laboratório, pegar o bico de Bunsen e fazer uma experiência. Mas tenho de tomar cuidado para não ficar centrada nos conceitos da minha geração. Em pelo menos uma Universidade nos EUA, o ensino de anatomia começa a utilizar hologramas, e é possível virar o corpo, ver as veias ou músculos da imagem em 3 dimensões.
Qual é o seu balanço do ensino remoto?
As escolas estão descobrindo formas diferentes de trabalhar dessa forma. Tem aquelas que colocam o professor diante de uma câmera e ele dá aula como se a turma estivesse na frente dele. Do meu ponto de vista, isso é uma bobagem, porque a própria mídia exige outro tipo de aula. É muito diferente do presencial, muito mais cansativo. Nossa experiência com os mais velhos, já alfabetizados, foi muito boa. Inicialmente foi preciso se adaptar, mas depois os pais e as crianças adoraram. O mais importante foi não adotar só o modelo do professor parado, falando sem parar. O professor manda fazer tarefas, ver um vídeo. Nós já tínhamos uma plataforma que agora começa a ser usada por todo mundo, o AVA, Ambiente Virtual de Aprendizagem. O aluno encontra tudo no AVA: o texto que o professor passou, a tarefa, a bibliografia. E também vai colocando seus trabalhos na plataforma. É muito prático, o aluno acha tudo. Tem pais encantados. Outra estratégia é promover encontros com poucos alunos. O professor chama seis alunos, pelo Zoom ou outra plataforma, para que possam ter mais tempo para falar. Temos uma experiência de poucos meses. Queremos fazer uma avaliação: foi melhor? Foi pior? Eu não acho que se aprenda menos neste modelo do que no ensino presencial. O tempo de aula é menor, mas o estudante fica com tarefas para fazer depois.
E como funciona a educação remota para as crianças pequenas? Os pais não se queixam por precisar acompanhar de perto as aulas dos filhos?
É mais difícil. A aprendizagem de crianças até a idade da alfabetização se dá principalmente no convívio com as outras crianças. Parte dos pais decidiu tirar os filhos das escolas e deixar com outras pessoas, como os avós, para poder trabalhar. Outros pais, como estão em casa, até podem achar divertido participar das atividades. Realmente, nas aulas dos pequenos, é preciso participar. Acho que a saída é uma parceria muito forte dos pais com a escola e um limite de no máximo uma hora, uma hora e meia por dia de ensino remoto. As crianças não conseguem ficar mais do que isso.
Então, você está certa de que o ensino remoto está aqui para ficar? Não haverá uma volta ao modelo anterior?
Se o confinamento acabasse hoje, talvez ainda desse tempo para retroceder e se acostumar ao velho de novo. Mas, se for até o fim de 2020, vai ser difícil não fazer uma transição para uma escola híbrida. O computador e a realidade virtual serão usados de verdade na educação. Antes já se usava, mas era de mentira. A escola tinha até laboratório de informática, imagine. Como se fosse uma igreja para iniciados. A tecnologia está na vida e vai ser usada. Além disso, há muitas vantagens numa escola híbrida. O professor percebeu que pode dar aula de casa, não precisa mais pegar ônibus para ir às várias escolas em que ensina. Os pais, que viviam no atropelo de levar os filhos à escola ou botar na condução, podem pensar: já que tem a babá ou a empregada em casa, o filho fica ali. Estou falando, é claro, de privilegiados, de quem tem com quem deixar a criança. Todo mundo gasta menos, é mais prático. E até o aluno também pode preferir. Fico pensando numa aula tradicional e o aluno dizendo: “Ah, bota no computador, professor, não precisa falar tudo isso não”.
Pode explicar melhor o modelo da escola híbrida?
É assim: uma parte da escola é presencial, como as aulas de laboratório, e uma parte em casa. Mas a leitura de um texto, as respostas a um questionário, os exercícios o aluno não precisa fazer na escola. Faz em casa, na hora que quiser. E a relação com o professor não precisa ser sempre uma conversa ao vivo. O estudante pode escrever para o professor: “Não estou entendendo a questão 3”. É possível manter essa relação. Mas é preciso dizer que essa não é uma mudança de paradigma. É uma espécie de futuro vintage, usado, pensado no passado, mas que pode perdurar por anos, décadas. A educação terá de passar por transformações mais profundas.
Uma pesquisa recente do Ibope mostrou que 72% dos brasileiros adultos acredita que as aulas só devem ser retomadas quando a vacina para o novo coronavírus estiver disponível. No contato cotidiano com os pais, essa tem sido a sua percepção?
Fizemos uma pesquisa com os pais para saber se eles mandariam os filhos se a escola reabrisse. Cerca de 30% responderam que os filhos iriam, 40% que não iriam e o resto não sabia o que faria. As crianças é que estão desesperadas, não são os pais. Elas querem encontrar os amigos! O grande problema do ensino remoto é a questão da socialização. A espécie humana é gregária, ela precisa de gente, ela precisa dos outros para sobreviver. Com a escola híbrida, os alunos podem se encontrar dois dias por semana.
Como seria a volta às aulas na sua escola, por exemplo?
Não será uma obrigação. Quem não quiser, não vai – vamos continuar com as aulas online até o fim do ano. As turmas serão divididas ao meio, mais ou menos, para que as crianças possam ficar bem longe umas das outras. Os mais velhos, do Ensino Fundamental 2, irão à escola semana sim, semana não. Já os mais novos, do Ensino Fundamental 1, irão dia sim, dia não. Cada segmento é diferente do outro, pelas características da faixa de idade. O recreio também será em grupos separados. É uma operação de guerra. Nós temos três cientistas da Fiocruz nos aconselhando. Tenho uma dor no coração só de pensar que as crianças, que estão roxas para voltar à escola física, terão uma decepção enorme. Os meninos vão voltar para o mesmo espaço, mas não para a mesma escola. Eles não poderão chegar perto dos amigos. Vai ter sempre alguém atrás para controlar. No começo até podem achar engraçado. As linhas indicando a separação que eles terão de manter estarão desenhadas no chão, como um jogo. Mas o jogo perde a graça depois de muito pouco tempo.
Para os professores, como tem sido a experiência de ensinar durante a pandemia? Parte deles não tinha habilidade no uso da tecnologia e teve muitas dificuldades. O que eles têm aprendido, o que têm inventado?
Olha, eu acho que vou fazer estátua na praça para os professores, fora de brincadeira. Gente, no nosso caso, em uma semana eles puseram de pé a escola online! Um negócio inacreditável! Claro, nem todos têm habilidade ao lidar as plataformas. Mas nós temos diversos orientadores e coordenadores na escola, inclusive de tecnologia. Entrou todo mundo na história, trabalharam até morrer, ajudaram uns aos outros. Os especialistas de tecnologia propuseram novas maneiras de trabalhar. Por exemplo: usar aplicativos interativos para fazer uma linha cronológica de História. É uma questão de adaptação, de largar os conceitos que a gente tem do que é uma aula.
O que é uma aula? O que é ensinar e o que é aprender?
Ensinar está inteiramente ultrapassado. Hoje, os teóricos avançados falam em aprender e não em ensinar. Essa coisa do professor lá na frente que fala, fala, fala… Da metade para trás da turma ninguém está escutando. Já era assim no meu tempo, quem se senta lá atrás está pensando na praia. Quando você ensina, o outro tem de estar na mesma sintonia para aprender. Se não está, danou-se: não adiantou o professor falar horas. E o que é aprender? Aprender é realmente se apropriar de um saber. É claro que você pode pedir ajuda a uma pessoa que sabe mais do que você. O professor não desaparece, ele tem de estar ali, para dar apoio nos momentos mais complicados. Mas quem tem de aprender é o aluno. Ninguém precisa ensinar a ele, ele tem que ser autônomo na sua aprendizagem, pensar sobre ela, se responsabilizar por ela. Se a questão é aprender, é preciso propor às crianças novas formas de aprendizagem, dando desafios e problemas da vida atual.
Boa parte dos pais estão muito preocupados com avaliações. Querem saber como o filho está indo na escola, e a nota traduz esse desempenho. Isso também precisa mudar?
Há um século o mundo discute mudanças na avaliação dos alunos. Prova é um absurdo. Eu acho imoral incentivar o estudo para a prova e não ensinar a pessoa a ser um estudante mesmo, alguém interessado em aprender. O que o aluno quer é tirar 7. Passar. Esse tipo de avaliação é inteiramente ultrapassado. Tanto que quase nenhuma escola, hoje, dá nota no boletim apenas com base na prova – consideram atitude, participação e outras coisas na avaliação. No caso dos adolescentes, eles aprendem a fazer as provas para as diferentes universidades. Tem a turma que estuda para a prova da UERJ, a turma da prova da UFRJ, a da PUC. São treinados para lidar com os truques da instituição, não para adquirir conhecimento. Mas a gente continua aplicando exames porque a sociedade ainda se baseia nesses parâmetros. Durante a pandemia, os alunos fizeram provas em casa. Mas o que eu achei mais interessante foi que também tiveram de fazer um relatório de aprendizagem, refletindo sobre em quais conteúdos tinham sentido mais dificuldade, o que tinham aprendido ou não. Na verdade, ninguém pode medir o que o outro sabe por uma prova. Só quem pode medir é o próprio aluno mesmo.
Você mencionou que o conteúdo da escola – como, por exemplo, a Revolução Francesa — está disponível na internet. Mas entender o curso da história é importante para formar pensamento crítico. Vamos abrir mão de saber fazer uma equação, um problema de geometria?
O que não dá para deixar de lado, de jeito nenhum, é a língua e a lógica matemática. Isso aí não pode abandonar, tem de trabalhar. As outras disciplinas, você trabalha a partir do texto. Há anos, numa escola pública nos Estados Unidos, onde minha neta mais velha estudava, o estudo da língua usava textos de História e Geografia. Na maioria das escolas brasileiras, até Literatura tem conteúdo separado de Português, reparou? A gente fica pensando picado.
Para fazer essas mudanças, tem de mudar a formação do professor?
Tem de mudar tudo na formação do professor. Ele tem de estudar como é que uma pessoa aprende, como isso se dá no cérebro. O professor tem de ler romance, tem de se cultivar. Ao terminar a faculdade, o professor de educação básica tem de poder fazer narrativas com os alunos, transmitir para eles o seu entusiasmo por aprender. Como é que você interessa um aluno por um livro? Você chega e fala: “Gente, esse livro é maravilhoso, é sobre isso e aquilo…”. Um professor de educação básica tem de ser um entusiasmado, tem de ser muito cultivado. Na verdade, você tem de ter uma cabeça aberta para o mundo. A escola tem de olhar para fora dos seus muros.
Algumas escolas podem resistir às mudanças por temer que os pais pensem que seus filhos não estão aprendendo.
Sim. Essa mudança deveria começar pela escola pública. Ela é que tinha de abraçar isso, porque a escola particular tem a lógica da empresa capitalista, ela tem de dar certo, não pode ter prejuízo (embora tenha, a maior parte tem). Tem uma faculdade particular no Rio, a Unisuam, em Bonsucesso, que está fazendo mudanças muito importantes. Eles mudaram tudo na faculdade: nos dois primeiros anos, eles juntam os alunos de todas as áreas – Engenharia, Medicina, Pedagogia…. Eles trabalham em grupos, com dois, três professores orientando. É uma experiência corajosíssima.
Mas não existe um currículo obrigatório previsto em lei?
A lei sempre tem uns buraquinhos. Nas escolas você tem bastante autonomia. Não se faz mais por medo.
Em um futuro de aulas remotas, como acomodar as famílias que não têm condições, espaço ou disponibilidade para cuidar dos filhos?
Talvez tenhamos lugares onde você possa deixar a criança. Digamos que não tenha vírus, então você deixa as crianças em um ambiente em que todos fiquem, só que não é para ter aulas presenciais, é para socializar e acessar o computador.
Até recentemente, havia muita preocupação com a excessiva presença dos meios digitais na vida das crianças. A escola era vista justamente como o lugar em que os meninos podiam viver no mundo real, fora das telas.
Perfeito. Os especialistas têm alertado para os malefícios do uso da tela para crianças. A Sociedade de Pediatria diz que até dois anos uma criança não deve ter contato com nenhum dispositivo digital. E eu me pergunto: e agora? Vamos fazer o que? Vamos deixar as crianças sem contato, sem escola, ou vamos ter que rever nossas crenças? Quando a realidade atravessa, você tem que pensar uma forma de sair do problema. Nós vamos ter de rever tanta coisa! Se vai ser melhor ou pior para a humanidade, não sei. Agora não tem escolha.
O nosso sistema de acesso à universidade, baseado no Enem, não impede mudanças? A necessidade de memorizar o conteúdo exigido não é contrária ao ensino baseado em projetos? Como resolver esse dilema?
As crianças de escolas particulares continuam sendo treinadas como eram. O terceiro ano é treinamento para fazer prova e entrar na faculdade. Mas temos de pensar que, quando esses abalos ocorrem, tudo se abala. Pode não ser agora, mas daqui a pouco, evidentemente, esse sistema terá de ser revisto.
Você tem dito que 2020 não foi um ano perdido para a educação. Por quê?
No caso da população pobre, temos uma situação desesperadora. Muita criança não tem acesso a computador, nem a internet. Esses estão sem aula, sem ensino formal nenhum todo esse tempo. Fico muito desanimada, porque a lacuna entre as classes sociais, que sempre foi imensa, vai ficar muito maior. Vai ser um desastre para o país. Mas, para as crianças privilegiadas, não é um ano perdido. No ano que vem elas estarão bem, mesmo que o professor tenha de dar uma corridinha com a matéria obrigatória. Essas crianças vivem em um contexto muito rico de informações, tem tudo à mão. A própria pandemia ensinou. As crianças aprenderam a ficar em casa. A suportar a frustração. Não é só a escola que educa a gente.
Entrevista concedida a Anabela Paiva