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Foto de Mariana Lobato

Exercícios para um corpo inteligente

Dona de dois estúdios de Pilates no Rio de Janeiro, Mariana Lobato costuma dizer que seu propósito é “tornar o corpo inteligente a partir do movimento”.  A frase sintetiza sua visão do Pilates, prática que associa o bem-estar mental ao físico. Afinal, ela diz, o corpo é o meio pelo qual o ser humano age e se expressa e é moldado pela cultura, a experiência individual e a história dos antepassados. Nascida no Chile, onde seus pais viveram como exilados, Mariana cresceu na Bahia, onde também cursou dança. Foi nessa época que ela conheceu o Pilates, novidade no Brasil, através de uma amiga bailarina, que acabara de chegar dos EUA. Em 1997, mudou-se para o Rio de Janeiro, para dançar na Companhia Ana Vitória, de dança contemporânea. Ao mesmo tempo, transformou a sala do seu apartamento no primeiro estúdio de Pilates da cidade. Nesta entrevista, Mariana, também professora da Angel Vianna Faculdade de Dança, conta que os treinos online têm ajudado a manter a saúde dos alunos e atribui o sucesso do método, criado pelo alemão Joseph Pilates nas primeiras décadas do século 20, à união da autopercepção ao trabalho muscular. “Forma é conteúdo. Minha forma é quem eu sou.”

É possível perceber a personalidade de uma pessoa a partir do corpo?

Uma das primeiras coisas que aprendi na faculdade de dança, ainda no primeiro semestre, é que forma é conteúdo. Claro que a minha forma é quem eu sou. É com essa forma que eu troco com o mundo. Não é só o que eu falo, é como eu chego, como eu gesticulo. Mas temos de tomar muito cuidado com as interpretações. Elas não são fixas. Ninguém é só uma coisa. A depender do dia, do momento, do que estamos vivendo, nós mudamos. É bacana que seja assim, é saudável. Há, também, uma parte genética:  nós nos identificamos fisicamente com formas de estar no mundo de ancestrais. Isso vem na memória genética. Nós pensamos o corpo como individual. Mas, na verdade, o corpo é resultado de uma herança e das nossas inspirações.

Pode dar um exemplo?

Vou contar uma história. Uma amiga que fez faculdade comigo tinha um joanete que a incomodava. A mãe dela é uma matriarca, uma figura forte da família.  Anos depois encontrei essa amiga e o joanete tinha desaparecido. Eu perguntei como ela tinha conseguido e ela me contou: “Você sabe como minha mãe é forte, é uma referência lá em casa. Eu comecei a perceber que eu tinha traços da minha mãe de que não gostava. Comecei a mudar minha postura e a tentar descobrir quem eu era. O meu joanete sumiu.” Além de genética, a forma também é comportamental. Temos uma memória experiencial, de todos os dias. Por onde eu vou, eu sou habitado, eu espelho, eu vejo, eu admiro.

Como surgiu o método Pilates?

Geralmente os métodos corporais surgem a partir da necessidade do inventor de superar uma dificuldade, uma doença. Foi assim com Laban e Feldenkrais. O Pilates também. O método, originalmente, não se chamava Pilates. O nome original é Contrologia, o controle completo do seu corpo por você mesmo. Joseph Hubertus Pilates era uma criança de saúde frágil, que tinha asma e raquitismo. A mãe dele tinha uma visão de saúde naturalista, se preocupava com alimentação, com estar ao ar livre, ao sol. E o pai era esportista. A medicina da época acreditava que as crianças com problemas respiratórios tinham de ser isoladas, mas sua mãe e seu pai fizeram o oposto. Cuidaram da alimentação dele, passavam tempo ao ar livre e o mandavam fazer atividades físicas. Ele cresceu com a percepção de que a falta de movimento traz doenças. Todo o trabalho que desenvolveu foi a partir dessa premissa.  Já naquela época, nos anos 1920, ele pensava que o homem moderno, na medida em que estava deixando de andar, plantar, pescar, estava se afastando de um corpo natural, e, portanto, ficaria doente. A Contrologia seria uma forma de, mesmo na modernidade, manter o corpo orgânico, vivo e saudável. Na minha visão, ele uniu influências da ioga, da escuta interna oriental, com o trabalho de corpo do ocidente, baseado no fortalecimento dos músculos. Pegou o melhor dos dois e juntou no seu método.

Por que, depois de tanto tempo, o Pilates é tão popular e continua a ser recomendado, inclusive, por médicos?

A grande diferença do Pilates é que, além da autopercepção e da escuta interna, que outros criadores da geração dele também defendiam, ele acreditava que o corpo tinha de ser uma estrutura forte. Forte e flexível. Se pensarmos, hoje não precisamos só de uma autoescuta, de um corpo cuidado, mas precisamos ser fortes. E ainda tem mais. Hoje, nós somos mídia de nós mesmos. Precisamos aparecer, precisamos nos apresentar, estar com o corpo saudável e bonito. Então, acho que o Pilates estourou pois ele consegue unir as duas coisas. É por isso que ele faz tanto sucesso hoje.

Ao longo dos anos o Pilates evoluiu, incorporou práticas de outras técnicas?

Quando Joseph Pilates morreu, não havia escolas como hoje. O conhecimento era passado do mestre para o discípulo. Ele transmitiu o seu trabalho para cinco discípulos diretos. Cada um seguiu no trabalho com o seu olhar. Assim, temos cinco bases do Pilates. Ele deixou um livro com 34 exercícios de chão e costumava fotografar e filmar o seu trabalho. Temos muitos registros. Mas hoje tem gente que diz que está dando aula de Pilates e não está. Tem Pilates na água, pendurado… O método Pilates tem princípios muito claros: a força do centro, a respiração, o controle do centro para as extremidades e a qualidade do movimento. A estes princípios, professores adicionaram outros conhecimentos. É claro que não dou aula como dava há 21 anos.  Hoje eu uso todo um conhecimento de trilhos para dar aula de Pilates.

O que são os trilhos?

Os trilhos anatômicos são um conhecimento recente, elaborado por Thomas Myers. Todos os músculos do nosso corpo são envolvidos por uma pele branca, chamada fáscia. A fáscia é rica de neuro receptores; toda a nossa sensação passa por esse tecido fascial. Na época do Joseph Pilates, ainda não sabíamos disso. E as fáscias estão conectadas. Tem um meridiano que vem do dedão do pé, passa pela sola do pé, vem pela batata da perna, passa pelo glúteo, vem pelo tórax, passa pela cabeça e acaba na testa. Então, se eu fizer uma flexão, pensando só no meu centro, vou fazer um trabalho mais muscular. Um trabalho miofascial vai além do músculo, é muito mais eficiente e integrado. Existem outros conhecimentos interessantíssimos, como o GDS.

O que é o GDS?

É um trabalho desenvolvido por uma fisioterapeuta chamada Godelieve Denys-Struyf. Ela acreditava que cada pessoa tem um jeito de se colocar, a partir da sua experiência de vida, e que isso marca a sua forma física.  Ela criou tipologias de cadeias musculares: AM, mais maternal, do acolhimento; AP, mais forte, determinada… São várias. O importante de um corpo saudável é equilibrar essas cadeias.

Como o Pilates entrou na sua história?

Tive a sorte de conhecer antes da maioria das pessoas, há uns 30 anos. Ainda em Salvador, antes de entrar na faculdade, eu era bailarina de uma companhia, chamada Balé Estúdio. Uma amiga minha foi fazer pós-graduação nos Estados Unidos e conheceu o Pilates. Quando voltou para o Brasil, ela passou a nos dar aula para a companhia. Foi quando eu conheci o método. Quando eu entrei na faculdade, na Bahia, eu praticava com ela. Ela importou dois equipamentos e dava as aulas em casa. Não existia Pilates no Brasil.

Foi essa amiga que formou você?

Ela começou a atender pessoas com diversos problemas físicos, que melhoravam muito com as aulas.  A procura foi aumentando e ela começou a precisar de mais gente. Ela formou um grupo pequeno, de uns dez professores. Mas começamos a sentir a necessidade de uma formação formal de Pilates para reabilitação. Trouxemos um professor para nos dar o curso no Brasil, era mais barato do que todo mundo ir fazer fora. Foi o primeiro curso de Pilates no país.

Quando veio para o Rio de Janeiro, você abriu o primeiro estúdio de Pilates da cidade?

Pois é, acho que foi em 1997. Era no meu apartamento, no Jardim Botânico. No começo, era engraçado, porque ninguém conhecia. As pessoas perguntavam para mim: “O que você faz?” Eu falava: “Trabalho com Pilates.” As pessoas ficavam olhando para mim: “Quem? Pilatos?”. Hoje todo mundo conhece. Inclusive, na faculdade de dança onde leciono, eu sempre tinha de contar toda a história. Hoje em dia, já não preciso.

Como você lidou com a necessidade de adaptar o ensino de Pilates à internet?

De um dia para o outro, fechou tudo. Segunda-feira, fui ao estúdio dar aula e foi muito ruim. Nas aulas nós pegamos em um monte de coisas: aparelhos, objetos fofinhos, nos quais não dá para passar álcool. Liguei para os professores e falei: ‘não dá para trabalhar’.” Mas minha mãe falou: “Vocês estão loucos. Eu vou ficar doente se eu ficar em casa sem fazer nada.” Ficou nervosa. Eu pensei: Pilates já falava, falta de movimento traz doenças. Minha mãe tinha toda a razão. Meu irmão tem um filho de 11 anos, que conversava com vários amigos no whatsapp, e perguntou: “Será que vocês não podem dar aula assim?”. Decidi: “Vamos experimentar”. Fechamos na terça, na quinta já estávamos dando aula online. E depois migramos para o zoom. Alguns alunos eram resistentes, mas a gente ligava, ensinava a usar o aplicativo. Não largamos a mão de ninguém.

Acha que a efetividade das aulas virtuais é parecida com as presenciais?

Não tem o toque da mão. Eu trabalho com uma linha do Pilates, a Fletcher, na qual a respiração é que conduz o movimento. É um trabalho quase dançante. Nós tocamos, olhamos por vários ângulos. Então, a primeira questão era esta: como fazer um trabalho com a mesma qualidade, trazer a experiência prazerosa e com confiança que os alunos têm presencialmente? A primeira etapa foi tecnológica.  Ensinar cada um a botar a câmera em um lugar em que eles pudessem nos ver bem e nós pudéssemos vê-los foi uma tarefa importante.  A escolha do trabalho também foi muito especial. No começo, optávamos por trabalhar com exercícios que eles já conheciam. Mas depois entraram alunos novos. Percebemos que era preciso dar mais referências espaciais para os alunos, já que não estávamos no mesmo ambiente. Começamos a usar cadeira, bastão, almofada, vários objetos – não como carga, mas para fazer o papel da mão. Usamos o bastão para o aluno entender o alinhamento, o deslocamento, uma torção. Eu uso a almofada para a pessoa perceber que tem de fazer uma pressão com o músculo, para ficar mais confortável para o joelho, para colocar a cabeça no lugar. É um trabalho forte, profundo e também acolhedor. A resposta dos alunos tem sido excelente. Alguns passaram a ser mais assíduos do que antes, deixaram de faltar. E a hora do Pilates costuma ser um momento especial do dia para os alunos isolados em casa. Tem sempre o momento em que se encontram no zoom, comentam a aula, falam de filmes.  Alguns trouxeram os cônjuges para fazer aula.

Você acha que incluir membros da família nessa prática online ajuda nas relações familiares? Afinal, a convivência constante durante esse período de isolamento pode causar desgaste entre as pessoas.

Acho que depende muito das relações. Tenho observado resultados positivos.  Se nós nos cuidarmos, se estivermos bem com nós mesmos, provavelmente estaremos bem com os outros. Não vamos transferir as frustrações para ninguém. Se alguém consegue envolver o parceiro numa atividade, só vai melhorar a relação.

Você acha possível continuar com as aulas online após o fim desta pandemia?

A aula online é boa, funciona. Mas eu não acho que substitui a presencial. Nós somos seres humanos. Queremos encontrar, estar juntos, ver, sentir, cheirar. Mas acho que a tecnologia veio para acrescentar. Eu nunca tinha feito um curso on-line de corpo e amei! Não tem conversa paralela, só um pode falar de cada vez. Eu estou em casa, posso acordar mais tarde um pouquinho, não preciso comer em um restaurante, sair correndo e voltar para a aula com a barriga cheia. A aula online de Pilates pode continuar a ser uma alternativa. Se um aluno vai viajar, por exemplo, pode fazer uma aula on-line.

Você acredita que o Pilates está ajudando as pessoas a lidar com a crise instaurada pela Covid-19 e com o distanciamento social?

Com certeza, sim. Acho que se as pessoas não estivessem fazendo atividade física em casa, teria sido caótico. A atividade física é indicada para quem está deprimido. Você mexe, estimula, produz endorfina. Sai daquela postura de desistir, sente que vai conquistar, conseguir. Quando fazemos uma aula, saímos vigorosos. E é o que eu disse: quando nos cuidamos, estamos cuidando da família inteira, do nosso ambiente de trabalho. Imagina o Pilates vendo a situação hoje. Ele falaria: “gente, façam Pilates em casa que ninguém ficará doente.”

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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