Em um mundo de relações virtuais, casamentos breves, carreiras instáveis e novos modelos familiares, avós e avôs têm precisado atender a novas expectativas. Por um lado, continuam a ser o porto seguro ao qual filhos e netos recorrem quando sacudidos pelas turbulências da vida, como um divórcio ou o desemprego. Por outro, desejam ser cada vez mais independentes e autônomos, e precisam estar antenados com as novidades e aceitar novos comportamentos e valores. Não devem dar palpite na dieta estrita dos netos, mas ai deles se não puderem – ou quiserem – cuidar das crianças quando os pais viajam ou estão sobrecarregados de trabalho. Esse é o contexto que a antropóloga Myriam Lins de Barros, professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, observa, com o olhar de quem pesquisa o tema da família e da velhice desde o fim dos anos 1970 e é avó de quatro netos. Autora de sete livros, entre eles Autoridade e afeto – Avós, filhos e netos na família brasileira (Zahar, 1987) e Família e Gerações (FGV Editora, 2006), além de inúmeros artigos e outros textos, a carioca de 70 anos constata que, embora a atual geração de avós e seus filhos tenham visões de mundo mais próximas do que no passado, os conflitos continuam. “Os avós, sobretudo as mulheres, gostariam de interferir mais na educação dos netos do que os filhos permitem. Para os avós, é como se a sua experiência de vida não fosse considerada por não estar de acordo com as regras do momento”, diz ela.
Nos anos 80 você pesquisou as relações entre avós, seus filhos e netos. O que mais lhe chamou atenção?
A diferença de visões de mundo entre avós e suas filhas. Naquele momento, vivíamos no Brasil o crescimento do movimento feminista e estas novas ideias provocaram uma grande divergência entre as avós e suas filhas em relação aos seus projetos de vida. Entre as mulheres que eram avós, eram raras as que tinham uma profissão; e, quando tinham, eram atividades claramente ligadas a um padrão “feminino”: funcionárias públicas, professoras, enfermeiras. Para elas, de modo geral, a vida profissional não era uma aspiração. Quando buscavam ganhar dinheiro, era para ajudar nas despesas da casa. Já suas filhas, mães de seus netos, cursaram a universidade e optaram por seguir uma carreira. A pesquisa evidenciou a diferença de concepções de mundo dessas duas gerações, no que se refere à vida pessoal, às famílias e à participação materna e paterna na criação dos filhos. Ao contrário das avós, as mães que entrevistei não tinham dúvidas sobre o seu direito de construir a vida de acordo com as suas escolhas e de almejar à autonomia financeira, tanto em relação aos pais quanto aos maridos. Assim, a principal diferença entre as avós dos anos 80 e suas filhas era o modo como umas e outras lidavam com os valores de liberdade e autonomia, centrais na construção da identidade do indivíduo moderno.
Comparando com o momento atual, o que mudou na relação entre avós e filhos?
As avós que entrevisto agora eram as mães da minha pesquisa anterior. Percebo que hoje as avós e as suas filhas, mães dos seus netos, têm visões de mundo e projetos de vida muito semelhantes. As avós atuais fazem parte de uma geração de mulheres que buscaram uma profissão, se divorciaram e se casaram de novo, o que seria impensável para as mães delas. Esta avó dos anos 2000 é muito parecida com a sua filha. Ambas valorizam a liberdade de ter seus próprios projetos de vida, que tentam conciliar com seu papel nas relações familiares. Apesar desses valores em comum, ainda há muitos conflitos, principalmente em relação à educação dos netos. Já na minha pesquisa dos anos 80, isso aparecia. Uma das avós que entrevistei me afirmou claramente que só era chamada para tomar conta das crianças. Na sua percepção, ela era uma avó babá, já que não podia expressar o que pensava e nem interferir na educação, para não criar problema com as filhas. Os avós, sobretudo as mulheres, gostariam de interferir mais na educação dos netos do que os filhos permitiam. Isso continua a ocorrer.
Por educação, você quer dizer disciplina?
Estamos falando de um conceito amplo. Trata-se de transmissão de valores e saberes. Também é parte de educar: ensinar a gostar de ler, brincar, jogar cartas, usar uma câmera fotográfica, apreciar o mar. Essas avós queriam participar do crescimento dos netos e se sentiam desprestigiadas e desvalorizadas porque não eram ouvidas. Já os avôs também se posicionavam de forma contundente, mas traziam outro aspecto: queriam valorizar as tradições familiares. Como me disse um dos entrevistados: “Eu quero mostrar que fazemos parte de uma linhagem”. Como acontece ainda hoje, os avós desempenhavam o papel de transmitir a ideia de família como um valor central na sociedade.
Alguns pais exigem que os avós obedeçam a regras rígidas quando estão encarregados de cuidar dos netos. Proíbem que seus filhos assistam televisão, brinquem com o celular, comam determinadas coisas… Dá a impressão de que esta seria uma forma de expressar uma crítica à educação que foi dada a eles. Aliás, costuma-se dizer que pai educa, avô deseduca. O provérbio é verdadeiro?
A ideia não é deseducar, de jeito nenhum. Mas é impressionante o número de regras que os pais adotam na atualidade. A criança não pode comer tal coisa, não pode ver televisão, não pode tomar aquilo. Antigamente havia muitos conflitos familiares em torno de ideais, de posturas de comportamento. Filhos de esquerda e pais de direita se enfrentavam; o tema da liberdade sexual era outra razão para divergências. Hoje em dia isso se diluiu muito. Talvez esse controle sobre a alimentação, as regras sobre isso e aquilo, sejam maneiras destes pais exercerem a sua autonomia em relação aos seus pais, os avós. Para os avós, é como se a sua experiência de vida não tivesse valor porque não está de acordo com as regras do momento.
Por outro lado, quando os avós estão encarregados dos netos, também querem marcar a sua autoridade: “na minha casa, meu neto vai seguir as minhas regras”.
Isso acontece sim, não tenho a menor dúvida. Podem dizer: “aqui o meu neto vem pra brincar. Vai comer quando quiser, dormir na hora que quiser”. Esta pode ser uma forma de os avós também exercitarem uma crítica sobre a relação entre os seus filhos e os netos. Mas nada disso significa deseducar. A participação na experiência cotidiana, o estar junto, não só cria o vínculo de afeto, mas transmite uma maneira de vida. Ensina, por exemplo, a respeitar a empregada. Coisas do cotidiano. Estar perto é fundamental para transmitir os valores.
Existe hoje, ainda, por parte dos avós, o desejo de ter autoridade, de que seus conselhos sejam ouvidos e de, como você diz, transmitir valores. Só que isso já não é visto da mesma forma por parte dos pais, dos netos. Conselhos e opiniões encontram um muro difícil de atravessar?
É, tem um muro sim. O valor do indivíduo autônomo, independente, é muito forte e compartilhado pelos casais. Hoje existem visões em conflito sobre o que é educar, e isso desafia os avós. Coisas que são colocadas em escolas, por exemplo, sobre igualdade de gênero, surpreendem alguns avós. Apesar de tudo, ainda há grandes diferenças entre as gerações.
A autoridade dos avós, hoje, compete com a dos pediatras e especialistas que aparecem na mídia?
Eu me lembro de uma avó que não pôde assistir ao parto do neto, só foi avisada depois que o bebê tinha nascido, porque tinha a doula. A doula acompanha a gestação, está presente no parto e, depois, visita a mãe no lugar da avó. O nascimento, como a morte, é um período de crise, em que as relações são colocadas em foco e as pessoas ganham novos papéis. Se, antes, a filha buscava orientação da mãe, agora a doula, que é uma espécie de enfermeira especializada, é quem ensina a amamentar. É uma profissional cara, mas quem pode pagar tem, e a avó não se mete. Outra história é a de uma família em que a mãe seguia orientações de que o bebê só deveria mamar de tanto em tanto tempo; se a criança chorasse, ela não podia pegar no colo. Um belo dia a avó foi visitar. A criança chorando, chorando…Ela rodou a baiana: “Chega, está tudo errado! Essa criança está morta de fome! Dá logo o leite, dá logo o peito!”. E aí resolveu.
Em um artigo recente, você abordou o desafio que a permanência dos filhos em casa até uma idade mais madura representa para os pais.
Eu, Clarice Ehlers Peixoto e a Maria Luiza Heilborn focamos nisso em um artigo e em uma live que fizemos na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro]. Atualmente, os filhos permanecem nas casas dos pais por muito mais tempo. Os jovens hoje se casam bem mais tarde do que a geração dos seus avós. Depois, se separam e voltam para a casa dos pais, ou da mãe. E aí o atrito é muito grande. Os avós e seus filhos já estão habituados a ter autonomia e independência. Os avós acolhem os filhos e netos, mas têm de negociar o cotidiano e repartir o espaço. É muito conflituoso.
Isso aconteceu especialmente durante a pandemia, quando muitas pessoas tiveram redução na renda.
Sim, é verdade. Mas tem sido uma ocorrência muito comum nas relações familiares. A [antropóloga] Tania Salem escreveu uma tese maravilhosa, intitulada “O casal grávido”, reeditada em 2007 e ainda muito atual. Na tese, ela relata como, ao planejar ter um filho, o casal tornava a gravidez um projeto comum. Não era só a mulher, era o casal que engravidava. O marido acompanhava todos os momentos da gravidez, assistia o parto. Mas a pesquisa revelou que, com o nascimento da criança, a noção do casal grávido se rompe, inclusive porque só a mãe amamenta. Neste momento de crise, a figura da avó materna é convocada. Vem à tona, de maneira muito forte, a importância da família extensa, que inclui os avós, outros parentes e até amigos.
No seu artigo, você e as coautoras observam que, com o aumento da longevidade, esses avós que acolhem filhos e netos por vezes também têm de cuidar dos seus próprios pais.
Mesmo na minha geração, ainda há pessoas que têm mãe e pai vivos, com quase 100 anos. Isso é algo que os nossos pais não viveram, pois a morte ocorria muito mais cedo. E acho que não será vivido pela próxima geração, pois, pelo menos nas camadas médias, a maior parte das pessoas têm filhos mais tarde. Então, o avô e a avó de hoje, ao mesmo tempo em que apoiam os filhos, precisam cuidar dos pais ainda vivos. Entra aí outra questão, que é a igualdade entre homens e mulheres no cuidado familiar. No passado, os homens não faziam nada. Quando minha irmã nasceu, nos anos 1940, minha mãe pediu ao meu pai para trocar a fralda do neném. Ele amarrou pelo pescoço! E olha que era médico! Hoje, pesquisas como a da Clara Araújo, Felícia Picanço e Celi Scalon – “Novas conciliações e antigas tensões: Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada” – mostram que, mesmo com toda a história do movimento feminista, o cuidado ainda é naturalizado como uma atividade feminina. As mulheres continuam a assumir o cuidado. Isso é comprovado com dados do IBGE. Uma pesquisa divulgada em 2018 mostrou que, em média, as mulheres dedicam dez horas a mais ao trabalho doméstico do que os homens. Mesmo quando as mulheres estão empregadas e os homens, desempregados, a diferença ainda é de seis horas, em média.
Que tarefas os homens passaram a desempenhar?
Lavar a louça até meu pai lavava. Hoje, além de lavar os pratos, eles cozinham, levam a criança ao colégio, saem com o filho para dar uma volta de bicicleta. Às vezes ajudam a criança nas tarefas escolares. Mas a dinâmica da casa – toda a organização, manutenção, etc. – fica a cargo das mulheres. No caso dos idosos, quando um homem diz que cuida do pai ou da mãe, em geral ele não cuida, paga alguém para cuidar. E vai, por exemplo, almoçar na casa da mãe uma vez por semana.
Há diferença na relação dos avós com seus filhos homens e mulheres, no que diz respeito ao cuidado dos netos?
Sim. Normalmente, a relação entre avós e suas filhas é mais próxima. Há uma tentativa das avós ensinarem as filhas a serem mães. Já as relações de avós com noras e genros são mais delicadas. Eles não são parentes consanguíneos. A intimidade, em geral, é menor e qualquer intervenção no cuidado dos netos pode ser vista como menos legítima. No caso do filho homem, quando ele se casa e forma uma nova família, via de regra o cuidado das crianças será compartilhado com mais frequência e intensidade com a mãe da esposa. Mas é claro que isso varia de acordo com a situação. Eu, como jovem mãe, tive muita proximidade com a mãe do meu marido, pois ela morava perto de mim. Minha sogra, assim como meus pais, foi um suporte muito importante.
Em geral, as relações de avós com os netos têm características diferentes daquelas que os pais mantêm com seus filhos. Para começar, hoje os avós podem decidir se querem ou não se dedicar à criação dos netos. A maioria dos avós continua a apoiar os filhos nesse cuidado ou muitos querem liberdade e dizem: “já criei meus filhos, agora vocês criam os seus”?
Uma mesma pessoa pode ter as duas atitudes. Outro dia uma amiga minha repetiu uma frase que meu pai costumava dizer: “É uma delícia quando eles chegam, é uma delícia quando eles se vão” [risos]. Antes era diferente. Primeiro, os avós tinham empregadas em casa, que podiam ajudar. Hoje é muito mais difícil contar com essa ajuda. A carga é maior. Além disso, aquela geração de filhos tinha mais impulso de individualidade e autonomia do que a dos jovens hoje. Eles têm a sua profissão, mudam de um lado para outro, mas têm em mente que o pai e a mãe ajudarão quando precisarem. Os filhos cobram que os avós estejam disponíveis – quando isso não acontece, é como se não estivessem cumprindo o seu papel. Mas os filhos não assumem que, em troca, deveriam ter algum tipo de obrigação e disponibilidade. Em qualquer sociedade, na medida em que você dá, espera necessariamente uma retribuição. Os avós esperam uma reciprocidade, pode ser que não venha ou que venha. Tem muitos avós que dizem: “Eu cuidei dos meus pais, mas tenho certeza de que ninguém vai cuidar de mim”. Ninguém vai cuidar, porque a cabeça é outra. Essa ideia da troca está presente de outra maneira na cabeça dos mais jovens.
As famílias hoje são muito diversas, não seguem mais o modelo tradicional – mãe, pai e filhos. Como essa diversidade impacta na relação de avós, netos e filhos?
Quando uma jovem assume seu relacionamento com outra mulher e as duas optam por ter filhos através de inseminação artificial, na maior parte das vezes o pai e a mãe as acolhem. Quando são dois homens, que resolvem adotar, eles também são acolhidos pelos pais. Acho que o desejo de ser avô ou avó é tão grande que supera os preconceitos, inclusive religiosos. Por outro lado, é interessante pensarmos que mulheres que se casam com mulheres e homens que se casam com homens querem formar essa família modelar. Há visões muito diferentes de famílias, mas elas não estão em enfrentamento.
Há casos em que os avós podem substituir os pais?
Há muitos casos em que avós, cujos filhos foram pais muito jovens, ainda quase adolescentes, assumem legalmente a guarda dos seus netos. Normalmente, o filho ou filha não tem condição de sustentar ou não está nem aí para ser pai ou mãe. Então a criança vem para casa dos avós e na verdade quem educa, quem cuida, são eles. Há um momento em que eles recorrem à Justiça para pedir a guarda da criança. Estou falando de casos que acompanhei. Em um deles, a mãe sumiu, sumiu mesmo. E o filho era muito drogado. A avó recolheu o bebê em casa e o assumiu, não só afetivamente, mas também legalmente, como responsável pela criança. Em famílias de baixa renda, a diferença é que as avós costumam ser mais jovens e não costumam procurar a Justiça.
Você é uma avó que cuida muito, ou uma avó que preserva a sua liberdade?
Um pouco dos dois. Dois dos meus netos vivem no Peru. Quando vamos lá, é uma farra. Os pais das crianças já tiveram situações delicadas quando fizeram cirurgias e nós fomos chamados para ajudar. Poderiam ficar só com as empregadas, mas os avós têm um papel afetivo. Aqui no Rio, é uma relação mais próxima, mas os pais estão em um momento de buscar a autonomia deles em relação a nós. Eu vou lá, mas muito mais para brincar do que para cuidar. A pandemia mudou muito as relações. Estou tentando incorporar isso como uma coisa boa. Fico mais aliviada por não ser encarregada dessa função de cuidadora. Mas, por outro lado, a gente se sente menos próximo, menos indispensável.
Na sua pesquisa, você percebeu que os avós se veem como responsáveis por perpetuar a tradição, a cultura da família. Este papel de guardião da memória persiste?
Memória não precisa de um caderno, nem, necessariamente, de um álbum de fotografias. A memória vem também nas trocas cotidianas. Isso também define uma família. A troca é permanente, seja de afeto, seja de objetos, seja de atenção dada às crianças – mas é uma troca também de memórias. Memórias presentes em um objeto, ou na sua própria presença, ou na maneira com que você trata as coisas. São formas de traçar essa aproximação entre gerações. Mesmo quando os filhos criam as regras, eles não estão jogando no lixo a memória familiar. A memória faz parte da vida humana, a memória individual faz parte da memória coletiva. Se a memória deixar de existir, não só a família vai deixar de existir, mas o próprio indivíduo vai deixar de existir.
Você também mencionou que a família é um valor para a nossa sociedade. Explica melhor este conceito?
Hoje, nas camadas médias, existe uma valorização da trajetória individual. O projeto de vida é do indivíduo, não da família. Então, o jovem diz que não quer fazer faculdade, quer ir para a Inglaterra ou para uma fazenda na Bahia. Nas sociedades indígenas, por exemplo, o indivíduo não é um valor. A pessoa só existe se está em uma comunidade. Para nós não é assim. Mas a família é um valor central para o sentimento de pertencimento social. Por isso a presença dos avós, dos tios, é tão importante. Por isso valorizamos a comemoração em família de aniversários e datas como Natal. A sociabilidade da família é fundamental para a construção da identidade do sujeito. A família dá ao indivíduo uma maneira de estar e se comportar no mundo, confere sentido às sociabilidades e ao modo de agir das pessoas. A família é o nosso chão.
Entrevista concedida a Anabela Paiva