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“É preciso resistir às telas”

Em 2015, a psicóloga Luiza Brandão passou a perceber uma tendência entre os adolescentes que atendia no seu consultório em São Paulo. “Começaram a aparecer pacientes com questões relacionadas ao uso excessivo de videogames. A maioria era de meninos, que chegavam com queixas como irritabilidade e ansiedade”, lembra. Interessada no fenômeno, Luiza fez dos videogames o tema da sua tese de doutorado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Sob a orientação da professora Zila Sanchez, Luiza integrou o grupo que participou de uma avaliação do programa federal #Tamo Junto 2.0, de prevenção do uso de álcool e drogas entre adolescentes. A tese de doutorado Fatores associados ao uso problemático de videogames entre adolescentes brasileiros, defendida em 2022, se baseou em dois estudos relacionados ao #Tamo Junto: um de 3.939 estudantes e outro, com 3.658 alunos.  Os entrevistados, todos alunos de escolas públicas do 8º ano do Ceará e de São Paulo, tinham entre 12 e 14 anos (90%).  A grande maioria – 85% dos participantes – disse jogar videogames e, desse grupo, 28% demonstrou ter uso problemático dos jogos. “Hoje esse índice provavelmente seria maior”, diz a paulistana de 35 anos, que se mudou para Sorocaba, no interior paulista, para fugir do estresse da vida na capital. Ainda dedicada a estudar a relação entre tecnologia e psicologia na infância e na adolescência e mãe de uma menina de quatro anos, ela compartilha no instagram recomendações sobre como lidar com o impacto de telas e jogos sobre o desenvolvimento de crianças e adolescentes. “É preciso resistir”, acredita.

O que atrai tanto crianças e adolescentes nos jogos eletrônicos?

LB: Os jogos, de fato, são de uma engenharia comportamental muito brilhante. Eles são estruturados de um jeito que estimula o usuário a jogar. É muito brilho, muito som, moedinhas que caem pela tela; o jogador nunca ganha só um ponto, ganha mil. E, a cada vez que o menino sobe de nível, a nova fase é desafiadora, mas não a ponto de causar frustração. O jogo é programado para estar sempre no nível do jogador. Além disso, o ambiente do jogo é muito organizado, enquanto o mundo lá fora não é. E a recompensa pelo sucesso é imediata, não é preciso esperar como a nota no boletim da escola. E tudo isso com quais objetivos? Manter a pessoa jogando. Então, temos o poder da engenharia comportamental e o dinheiro de uma indústria bilionária em prol de manter conectados crianças e adolescentes que têm um córtex pré-frontal – a parte de cérebro que permite o controle de impulsos – ainda não desenvolvido. É óbvio que vai dar problema. 

Quais fatores podem levar um adolescente ao uso problemático dos jogos?

LB: O problema é mais frequente entre garotos de 12 anos em diante. Tanto a literatura sobre o assunto quanto a minha clínica mostram que esse tipo de comportamento costuma estar associado a outras questões, como o transtorno de déficit de atenção (TDAH), hiperatividade e ansiedade. Um dos principais motivos de uso excessivo dos games entre adolescentes é a dificuldade de dar conta da vida real. Quanto mais o mundo do jogo for melhor do que o real, mais ele tenderá a ficar preso nesse mundo virtual. Muitas vezes, são meninos que já apresentavam dificuldades na escola, o que reduz a autoestima. Só que esses mesmos meninos são muito bem-sucedidos nos jogos, conquistam medalhas, tem status. 

A sua pesquisa indicou que 28% dos adolescentes entrevistados apresentavam uso problemático dos games. Como você define o uso problemático? Que características indicam o problema? 

LB: Para a pesquisa, utilizamos o Manual de Doenças Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) da Associação Americana de Psiquiatria. O manual estabelece nove critérios, que eu transformei em perguntas objetivas, respondidas pelos adolescentes. As questões eram:  “Você se preocupa com os jogos durante o dia, mesmo quando está fazendo outras coisas?”; “Você fica triste, ansioso ou irritado quando não pode jogar?”; “Você tem aumentado o tempo gasto com jogos?”; “Você ou alguém já tentou, sem sucesso, reduzir o tempo que você passa jogando?”; “Outros passatempos anteriores perderam a graça e agora só jogar é interessante?”;  “Você já continuou jogando mesmo sabendo que isso te traria algum tipo de problema?”;  “Você já mentiu para alguém sobre o tempo que passa jogando? “; “Você já jogou para esquecer ou aliviar problemas da vida real?”; “Jogar já trouxe prejuízo na escola ou em relacionamentos com pais, amigos ou namorados?”. Os que responderam afirmativamente a pelo menos cinco questões se enquadravam no quadro de uso problemático. Vale ressaltar que não uso termos como viciado ou compulsivo. Problemático é uma categoria que enfatiza os danos que o uso excessivo pode causar ao indivíduo. 

O número de horas passadas jogando é um fator relevante? E o tipo de jogo?

LB: O número de horas é um fator de risco. Quanto mais horas jogando, maior a chance de uso problemático. E o conteúdo do jogo também é absolutamente relevante. A exposição muito prolongada ao conteúdo de jogos violentos, que são 85% dos jogos comercializados, pode ser fator de risco para outros problemas, segundo pesquisas. Também é muito importante considerar ‘para quê’ a pessoa joga.  Em um artigo que produzi no doutorado, tentei investigar as motivações, a partir da pesquisa. Entre os adolescentes pesquisados, 57% afirmaram que jogam para esquecer os problemas. Na literatura, este comportamento aparece como associado a maior risco de um uso problemático.

O que leva um adolescente a buscar ajuda de um terapeuta?

LB: É muito comum que o adolescente ou jovem não reconheça o problema. Normalmente, quem procura são os pais, que identificam sinais de alerta:  o adolescente não quer sair do quarto e nem de casa; a higiene pessoal deixa de ser regular; na escola, não entrega os trabalhos, falta, repete de ano. Como passam muito tempo sentados, frequentemente passam a apresentar ganho de peso.  

Nos Estados Unidos, o percentual de usuários problemáticos de jogos é de 8%. No Brasil, segundo sua pesquisa, é mais do que o triplo desse número. Como explicar esse percentual tão alto?

LB: É um dado assustador. Eu tenho hipóteses, não certezas. Temos muito medo da violência, e os pais acreditam que o adolescente está mais seguro em casa do que na rua. Mas é natural que os adolescentes queiram encontrar pessoas da mesma idade. Então, por um lado, há um desejo do adolescente de estar com seus pares; e, pelo outro, pais que restringem as saídas dos filhos. Agora os adolescentes têm essa plataforma virtual de encontros, que permite que eles estejam com seus amigos o tempo todo. Outra razão pode ser a falta de dispositivos de lazer em muitas áreas urbanas. Se existissem mais locais em que os adolescentes pudessem estar juntos, é possível que não precisassem tanto do jogo para se encontrarem. 

A pandemia de Covid-19 agravou o uso problemático dos jogos? 

LB: Naquele período, de repente, as telas passaram a ser a única ferramenta para fazer muitas coisas. As escolas foram para as telas. Não havia outro jeito de ver os amigos. Suspenderam-se os parâmetros usados até então e o mundo ficou muito mais conectado. As plataformas entraram nas escolas e não saíram mais. Então, a presença da tecnologia na vida das crianças e dos adolescentes aumentou exponencialmente. E a saúde mental de todo mundo despencou. Ainda hoje, no meu consultório, atendo casos de adolescentes que não voltaram para a escola depois da pandemia. Vários deles tem casos importantes de ansiedade, que se aprofundaram durante a crise sanitária. Eles não conseguem sair de casa e nem frequentar a escola sem apresentar crises de ansiedade. A minha pesquisa foi feita antes da pandemia. Se a gente pesquisasse hoje seria pior. A gente colocou os adolescentes nas telas e falou: fiquem aqui. E na hora de tirar da frente das telas, ninguém sabia muito bem como fazer isso. 

Quando chega ao seu consultório um adolescente que não está usando os games de maneira equilibrada, o que que você propõe? Que estratégias podem ser adotadas? 

LB: Uma estratégia importante é cuidar do relacionamento familiar. Um bom relacionamento familiar é fator de proteção. Nos casos de um uso muito desordenado, geralmente o relacionamento familiar está horroroso. Os pais não aguentam mais os filhos, os filhos não aguentam mais os pais. Eu sempre falo para as famílias: seu filho vai sair desse reino, onde ele é incrível e se dá bem, para tomar bronca do lado de fora? Se toda vez que ele deixar de jogar só ouvir frases como ”Você já fez a lição?”, ”Você não fez isso”, ”Está vendo, é por isso que você vai ser um fracassado”, ele não vai querer sair do mundo virtual. É importante avaliar os relacionamentos e, muitas vezes, contar com a ajuda de profissionais para resgatar os laços de afeto. 

Que tipo de terapia costuma ser recomendada? Existem outras providências que a família pode adotar para que o problema seja minorado?

LB: Ainda temos poucas pesquisas sobre esse tema, mas a Terapia Cognitiva Comportamental é uma abordagem terapêutica que tem algum grau de efetividade para esse fenômeno. É preciso uma abordagem familiar, sistêmica. Eu não espero que o adolescente, principalmente os mais novos, consigam se autorregular. Até por uma questão de desenvolvimento de córtex pré-frontal, eles ainda não dão conta do autocontrole necessário para lutar contra a engenharia comportamental das indústrias. As famílias vêm e muitas vezes construímos conjuntamente os limites de uso, para que isso não seja mais um motivo pra briga. Se um menino que tinha livre acesso ao jogo de repente deixa de poder jogar, coisas muito graves podem acontecer: ataques de fúria, crises severas, tentativas de suicídio. Além disso, é preciso dedicar-se a melhorar a relação familiar, construir uma vida fora das telas mais plena e prazerosa. No caso dos adolescentes que têm dificuldades muito grandes na escola, pode ser o caso de colocar professor particular, tutor ou psicopedagogo, para que ele consiga ser mais bem sucedido. Ou mudar o estudante para uma escola diferente, adequada ao perfil deste menino ou menina. O adolescente precisa receber mensagens de que ele é querido, de que ele dá conta fora do jogo. Estimulá-los a descobrir outros interesses é importante, assim como o exercício físico. Além de ajudar a ter uma vida mais balanceada, nessas atividades os adolescentes vão encontrar amigos e passar mais tempo fora de casa. A proposta é mirar na vida, para que a vida cresça e o jogo não precise ocupar tanto espaço. Às vezes a gente descobre uma depressão encoberta pelo videogame e, eventualmente, pode ser indicado um tratamento medicamentoso para esses quadros. Em resumo, é preciso ajudar esse adolescente a se perceber potente fora do jogo. 

É preciso iniciar uma prevenção contra o uso excessivo de jogos e outros dispositivos já na infância?

LB: Em uma reunião que estive em uma escola, recentemente, ouvi relatos de que os professores precisam ensinar as crianças a brincar, porque elas têm chegado sem repertório para ter autonomia no brincar, precisam ser mediadas por adultos. Minha recomendação é permitir o mínimo possível de uso de telas e selecionar cuidadosamente que jogos ou vídeos a criança terá acesso.  Essa questão não é mais grave no adolescente do que na criança pequena. O uso das telas pode induzir a um comportamento passivo e a criança pode deixar de desenvolver a criatividade e a capacidade de explorar e de tolerar frustração. A meu ver, é quase criminoso uma criança de 0 a 2 anos ter acesso a telas.  

Restringir o acesso às telas é uma questão que preocupa a maioria dos pais hoje. Por que os pais sentem tanta dificuldade de fazer isso? 

LB: Da perspectiva parental, as tecnologias são mais uma dimensão da existência. Os pais sempre ensinaram sobre higiene, dinheiro, alimentação. Agora também têm de falar sobre tecnologia. Só que a maioria dos pais de crianças e adolescentes de hoje aprenderam quase nada sobre tecnologia na infância. Assim, os pais ficam muito perdidos, pois não têm referências sobre como conduzir essa questão. E do outro lado, tem a força das big techs. Elas não têm a preocupação de garantir que seus produtos sejam saudáveis A questão da responsabilização das plataformas é importante, porque, enquanto os pais ficam assoberbados, tentando lutar contra o uso excessivo das telas, grandes departamentos de engenharia comportamental, com muito dinheiro, se dedicam a manter as pessoas conectadas. 

Muitos pais, entretanto, se antecipam à criança e colocam diante dela o tablet ou celular, para ter sossego. É uma cena comum em restaurantes.

LB: A sobrecarga parental é um motivo para a situação hoje. É preciso um olhar compassivo para essas famílias, entender que as exigências sobre os pais são cada vez maiores e o sistema de suporte é cada vez menor. Antes eu partia de um olhar de julgamento, mas percebi que não consigo ajudar ninguém quando estou julgando. 

Você tem uma filha. Como lida com essa questão na sua vida pessoal? 

LB: Sou bastante estrita com relação ao uso de telas, mais restritiva até do que as recomendações. Ela está com quatro anos. Pelos guidelines, já poderia assistir a uma hora de vídeo por dia. Mas ela não assiste nem perto disso. Ela não tem acesso a telas durante a semana. Quando muito, assistimos juntas a um filme, um ou outro final de semana. E para mim não basta que o filme seja classificado como livre.  Para escolher eu entro em um site, o Common Sense Media, que publica resenhas de filmes e estabelece parâmetros de adequação à idade. O que percebo é que se eu não for resistência, ela vai ter muito mais tela do que o adequado. Até ela fazer dois anos era zero telas, como é a recomendação dos estudos especializados. Então ela teve uma infecção urinária. Para levá-la ao pronto-socorro, tive de sentar de costas para a TV do hospital, que passava um desenho animado. Ficamos ouvindo música no meu celular com um fone. A TV ligada, até como fundo para a conversa, é algo muito naturalizado na nossa cultura. É preciso resistir.

Por que ela não podia ver o desenho animado no hospital? O que te preocupa nisso? 

LB: O conteúdo me preocupa muito. A tela é um promotor de consumo, o que para mim não faz sentido. Eu quero incentivá-la a ter hábitos mais saudáveis do que ficar exposta à tela. Se hoje eu a ensino a ver desenho, em vez de ver um livro, com 13 ela vai ver TikTok. O desenho em si talvez não seja especialmente problemático, apesar de vários serem violentos e terem conteúdos bem complicados, mas eu quero que ela aprenda a desenvolver estratégias mais saudáveis para esperar e lidar com o tempo.

O que mais os pais podem fazer para prevenir o problema? 

LB: Ao pesquisar uma escolinha para o bebê, é preciso entender: creche não deve ter telas. Creche com sala interativa? Foge. Ao colocar uma babá, orientar a funcionária sobre o que não é tolerado em termos de uso de mídia. O mesmo em relação a outros adultos que possam ficar com a criança.  Apoio o Dr. Daniel Becker, pediatra, quando defende que crianças de até 12 anos não tenham celular. Outra recomendação é a de que até 10 anos a criança não possa acessar sozinha a internet. As famílias precisam conhecer essas recomendações, que são divulgadas pela Sociedade Brasileira de Pediatria.  Antes de levar ao cinema, pesquisar sobre o filme. Conversar com os pais dos coleguinhas. Se vão brincar juntos, combinar de não levar tablet. Se os meninos todos querem jogar videogame, combinar qual é o jogo que eles vão jogar juntos, ao invés de deixar que eles escolham por conta própria (isso pensando nos menorzinhos, que os pais ainda podem direcionar melhor). É preciso trazer esse tema para pauta, falar sobre ele e nos fortalecermos como comunidade. 

Você acha que as escolas estimulam ou pelo menos não fazem prevenção contra o uso excessivo de telas?

LB: Minha percepção é que as escolas estão perdidas e ainda não estão sabendo para onde mirar. Em alguns países há leis que proíbem o celular dentro da escola. No Brasil, cada escola escolhe como conduzir. Várias escolas proíbem o celular na sala de aula, mas têm dificuldade de executar. Às vezes são os pais que mandam mensagem para os filhos e querem respostas imediatas. Hoje em dia, se você chega a uma escola no horário de recreio, os adolescentes estão todos encostados na parede, cada um com o seu celular, jogando. Isso é muito prejudicial para o desenvolvimento. E quando pergunto por que a escola deixa isso acontecer, a resposta é: “porque os pais não querem que a gente tire o celular”.  As escolas terão de contrariar os pais, porque o papel da escola é promover o desenvolvimento. 

Mas o uso da tela para o aprendizado na escola hoje é inevitável.

LB: As telas podem ser usadas para três finalidades: como ferramenta, como entretenimento e como regulação emocional. Essa diferenciação é muito elucidativa. Regulação emocional é quando usamos a tela para lidar com o humor. Por exemplo: se meu filho está chorando, eu dou o celular para ele parar de chorar. Isso não é recomendado, pois a criança deixa de aprender a regular suas emoções sozinha e vai se tornando dependente. Esse padrão está associado a uma série de sintomas emocionais importantes. Por isso é preciso ensinar outros repertórios. Não basta tirar a tela. Nós, pesquisadores da área, não queremos acabar com as telas. Queremos aproveitar as potencialidades que elas oferecem, mas minimizar os riscos. Para que os adolescentes tenham pensamento crítico e saibam usar as ferramentas digitais para transformar o mundo, é preciso uma alfabetização digital.  Aprender ética, segurança. Algumas escolas já estão colocando isso no currículo. O computador na escola deve ser uma ferramenta, não entretenimento. É preciso realizar uma discussão um pouco mais ampla dentro do espaço educacional sobre como maximizar o benefício e diminuir o dano.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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