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“A memória é um capital maior do que o botox”

Em 2023, Heloisa Teixeira decidiu abrir mão do sobrenome do primeiro marido, Buarque de Hollanda, mantido após a separação e durante o segundo casamento. Numa homenagem a uma “mulher oprimida pelo patriarcado”, adotou o nome da mãe – e o tatuou nas costas, junto aos dos sete netos. A mudança ocorreu às vésperas da escritora completar 84 anos e de tomar posse de uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras (ABL). 

O fato de uma acadêmica octogenária mudar de nome e fazer a sua décima primeira tatuagem pode espantar quem não conhece a trajetória da professora emérita da Escola de Comunicação da UFRJ. Inquieta, curiosa, carismática, Heloisa sempre questionou as instituições, mesmo dentro delas. Autora de dezenas de livros e inventora de iniciativas que fizeram história, tornou-se uma das principais pensadoras do feminismo; escreveu sobre poesia marginal e criou a Universidade das Quebradas, um projeto de extensão universitária que reúne integrantes da academia e produtores de cultura da periferia em um espaço de criação e troca de conhecimento.

Por isso, não venham dizer a Heloísa que ela não mostra a idade que tem: ela estrila.  Seu grande orgulho é o capital intelectual e afetivo que construiu ao longo da vida –tema, aliás, do documentário Helô, dirigido por seu filho, Lula Buarque.  Nesta entrevista, ela relaciona o etarismo, preconceito que afeta os velhos (Heloisa não usa a palavra idoso) às exigências do capitalismo e discorre, sem meias palavras, sobre a experiência de envelhecer, tema do seu próximo livro.

Existe hoje uma grande cobrança de que as pessoas lutem contra o envelhecimento e se mantenham jovens, como se envelhecer fosse uma opção. O que você acha disso?  

Heloisa – Eu vejo isso no meu entorno. Pessoas de 20 e poucos anos fazendo procedimentos estéticos, harmonização facial! A cobrança é maior com as mulheres, claro.  Mas não é só uma demanda social que motiva isso. Se você vai a uma dermatologista para cuidar de uma espinha, ela propõe um tratamento com laser.  Existe uma oferta insana de serviços. A indústria da juventude precisa manter o seu mercado – por isso a pressão para que as pessoas busquem se manter jovens. O que, do meu ponto de vista, é um equívoco. Acho feia uma pessoa esticadíssima, mesmo que tenha feito intervenções com grandes cirurgiões. E o mais grave é que, em geral, essa pessoa renuncia a um capital muito importante, que é a experiência. O engraçado é que foi a minha geração que inventou o jovem. 

Como se deu essa invenção?

Heloisa:  Foi na década de 1960, especialmente em 1968, com os protestos e passeatas que ocorreram em vários países, que o jovem surgiu como sujeito político, com acesso ao poder. Foi uma mudança fulminante. E aqueles jovens realizaram um prodígio: pela primeira vez, misturaram as classes. Tinha preto, branco, padres … Era o chamado “poder jovem”. A juventude foi inventada ali. É essa geração que está velha hoje, com mais de 80 anos. Por sinal, pelo que tenho observado, é uma geração que não está evitando a velhice. Ela está vendendo a sua experiência. O [Gilberto] Gil viaja com netos, filhos… O clã que ele produziu. Caetano [Veloso] também só canta com a filharada e agora já começam a falar do neto. Já houve época em que as pessoas não queriam ser chamadas de avós, para não se sentirem velhas. Eles, ao contrário, exibem os netos. Claro que estou falando de um grupo social pequeno: os intelectuais de 1960. Mas o certo é que o velho tem muito a oferecer, gente. Em outras culturas, como nas sociedades indígenas, o velho é o centro. 

Embora a ONU tenha decretado que os anos de 2021 a 2030 são a “Década do Envelhecimento Saudável”, idosos parecem sofrer cada vez mais preconceito motivado pelo envelhecimento, o chamado etarismo. Onde e como esse etarismo se manifesta? 

Heloisa: Uma das maneiras é tratar o velho como incapaz. Perguntar se precisa de ajuda para fazer coisas simples. Falar com o idoso usando diminutivos, como se fosse uma criança. Outra é não empregar uma pessoa para um trabalho porque “está velha”. Isso é igualzinho ao racismo. O pior é o que acontece na UTI: quando é preciso escolher a quem salvar, salva-se o mais moço. Claro, não vão salvar o velho que está quase morrendo. Durante a pandemia da Covid-19 este era um debate terrível. Se não havia recursos para entubar todos os doentes, é logico que as equipes médicas teriam de dar preferência ao jovem. Do ponto de vista da sociedade produtiva, está certo. Mas, para o idoso que está na UTI, é cruel. 

Várias influenciadoras nas redes sociais discutem o etarismo. Geralmente são mulheres acima dos 50 anos, que nas redes mostram que continuam vitais, alegres, capazes de atrair parceiros e de viver a sua sexualidade.  Embora o trabalho delas ajude outras mulheres a ter uma autoimagem positiva, me parece que elas tentam ignorar o próprio envelhecimento. Como você vê essa perspectiva?


Heloisa: Eu acho que isso é uma furada, mas é compreensível. Estamos em um mundo em que o que conta é a sua produtividade. Enquanto estiver produtivo você existe, quando não estiver, é encostado. Eu, Gil e outros, estamos produtivos. Ainda somos força de trabalho, estamos quites com o mercado. Aquela imagem do idoso que se aposenta e passa o dia de pijama e chinelo vendo televisão motiva o etarismo por parte das outras pessoas. O velho tem de inventar o seu lugar na vida.

Você é uma feminista e estudiosa do feminismo. A luta contra o etarismo está na pauta dos movimentos feministas?  

 Heloisa: Acho que ainda não. É muito novo esse negócio de ficar velho. A penicilina passou a ser adotada como remédio em 1940. [A autora e referência feminista] Simone de Beauvoir, no livro A Velhice, mostra como a sociedade ocidental lida mal com a velhice, em comparação a outras culturas. Mas ela foge da raia com graça: pesquisa o envelhecimento em outros povos – sempre longe da sua experiência. Escreve brilhantemente sobre a velhice – dos outros. 

A ideia da velhice como um demérito, como ausência de potencial, também existe nas camadas sociais menos favorecidas?

Heloisa: Nesses grupos, ao contrário,  a velhice é muito valorizada. A avó toma o lugar da mãe, cuida dos seus filhos e dos netos. Ela é indispensável para que os filhos possam trabalhar, fazer a sua vida. Ela é muito importante, ela tem lugar. O problema da velhice é a falta de lugar. Eu não tenho a função da avó nas famílias pobres. Eu não sou indispensável. Às vezes, quando viajo com os filhos, me sinto um encosto. Porque eu não estou dirigindo o carro, por exemplo. Ou quando tem Natal na casa dos outros…  

O que tem o Natal ser na casa dos outros?

Heloisa: Ué, o Natal tem de ser na minha casa, eu é que sou a mãe. É muito estranho: a vida toda você é o eixo da família, o Natal é você. Aí você envelhece e os filhos começam a não querer dar tanto trabalho. Você insiste. Fica exausta, mas faz o Natal. Mas, de repente, você abre mão desses privilégios – e é terrível. Na casa do filho, é outra comida, outra bebida, outras pessoas. Ele é que é o patriarca. Você se sente milhares de anos mais velha e totalmente desprestigiada ou desqualificada. Quando você chega na festa e vê uma árvore de Natal que não fez, o primeiro pensamento é: perdi, playboy. É um sentimento ruim. Você não aguenta mais, mas não quer perder o poder. 

Alguns pesquisadores defendem que a velhice é uma fase áurea da vida, a época de maior felicidade. É quando a pessoa se permite engordar, fazer o que quiser, dormir durante o dia, pode aproveitar a vida… O que acha disso?

Heloisa: Não tem nada a ver. A velhice é uma fase em que as pessoas lutam para sobreviver, estão cheias de dores, descobrindo doenças, tomando remédios… Parte das pessoas sente que está perdendo a autonomia. Isto é aterrorizante. Muitos chegam à velhice sem ter dinheiro, sem poder tomar banho sozinhos. Não adianta tentar disfarçar… Todo mundo vê que ser velho não é bom. As pessoas dizem: “Você está bem, eu queria estar como você”. Mas não é verdade. É uma fala que vem do pânico de encarar a velhice nos outros. É preciso encarar a velhice. Vem um e diz: “Minha avó tem 105 anos, está ótima”. Eu falo: “Isso é uma piada, né? “.

As pessoas fogem do envelhecimento porque ele traz a ideia da nossa finitude? 

Heloisa: Não, fogem porque o velho sai do padrão. Eu tenho certeza de que não é por causa da ideia da finitude. Essa ideia, na realidade, a gente não tem, te juro. Você fala em finitude, mas não acredita. Agora, sair do padrão, ficar com a cara cheia de rugas, perder cabelo, engordar… é sair do padrão sucesso. A pessoa começa a ficar desesperada e a se esticar toda, mas não adianta, fica ridículo. 

Você está escrevendo um livro sobre o seu envelhecimento. Como vai ser?

Heloisa: Será uma terceira versão do meu livro Escolhas – Uma autobiografia intelectual. Fiz uma versão aos 60 anos, outra aos 70. Agora vou fazer uma terceira, aos 80 anos, em que só vou falar de velhice.  A minha. O que estou fazendo, o que eu fiz, o que sinto… Um relato biográfico. Esse assunto é muito difícil. No livro anterior não falei do envelhecimento. A última frase é: “Acordei e lembrei que eu estou com 70 anos. Pela primeira vez pensei em morte”. É assim que acaba.

Você pensa na morte?  

Helô: A gente não acredita na morte. É impossível acreditar. Você pode falar a toda hora: “estou quase morrendo” – mas não acredita. Eu estou com 84 anos, em plena zona do agrião, e não penso nisso. Quer dizer: eu penso muito, falo, ajo, dou as coisas para todo mundo, tenho um comportamento de quem está perto do fim – mas não imagino a morte. Não dá mesmo. Eu bloqueio. Não sei se isso é geral ou se é meu.  Eu não acho ruim morrer. A gente fica cansada de viver. Perdemos a mobilidade, perdemos coisas muito boas, indispensáveis. Então a morte, para mim, não é uma ameaça pavorosa. É até um alívio.  

Em uma crônica, o escritor José Eduardo Agualusa escreveu que não se incomodava com o seu próprio envelhecimento, mas que se incomodava com o envelhecimento dos pais. Como você viveu a morte dos seus pais?

Heloisa: Para mim foi um pânico. A morte do meu pai foi um suspense. Ele morria todos os dias na minha cabeça. Aí, quando ele morreu, sobrou minha mãe. O dia em que ela morreu eu fiquei muito triste, mas deu alívio. Pensei: “acabou essa história”. Parecia que eu tinha encerrado uma fase muito importante da minha vida. Ninguém mais iria morrer acima de mim. 

Acha que para os seus filhos também foi difícil

Heloisa: Bem menos. Hoje eles são mais descolados da gente, eu acho. Apesar da morte do Luiz [Buarque de Hollanda, primeiro marido, advogado e galerista] ter marcado muito, principalmente o Pedro. Pedro faz um jantar em todo aniversário do pai. Já me disseram: quando você morrer, vamos colocar uma banda legal. Eu digo:  quero lágrimas, não quero festa.

Como qualquer pessoa que tenha chegado à sua idade, você foi testemunha de mudanças profundas no Brasil, tanto do ponto de vista cultural como político. Você sofre com saudosismo daquele Brasil antigo? 

Helô: Não sinto saudosismo. Acho que o Brasil antigo não foi tão bom quanto a gente pensa. Sempre teve muito preconceito, muita exclusão. Para as mulheres, a falta de liberdade era terrível. A mulher não podia comprar um apartamento com o seu dinheiro. Tinha de ser o pai ou o marido. Ao mesmo tempo, nos anos 1960 o pior era ser chamado de quadrado – o que hoje se chama careta. Se você fosse quadrado, não tinha lugar. Então você tinha de fingir que fumava maconha, que cheirava, que ia entrar na guerrilha, que transava com todo mundo… Era fundamental que acreditassem nisso. Todo mundo fala dos anos 1960 como uma época de liberação, mas liberdade que é bom, não tinha não. 

O que lhe surpreende no Brasil de hoje?

O que eu vejo de espantoso é a violência. Isso a gente nunca imaginou, essa é a novidade espantosa. Na política sempre houve uma alternância, sempre vinha um ditador, saía, depois vinha outro. E todos roubam. Mas a violência no cotidiano é uma novidade terrível. É dificílimo pensar em como sair deste quadro.  

Encontramos uma entrevista sua, na Glamurama, de 2021, com o título: “Heloisa Buarque de Holanda inspira nova geração de mulheres”. Como você consegue dialogar com jovens de hoje? O momento é tão desafiador, com os movimentos identitários e identidades de gênero fluidas… Qual é a chave para trocar com os jovens?

Heloisa: Eu faço meus livros para a nova geração das mulheres. Mas, em termos de diálogo, o velho geralmente tem mais disponibilidade de escuta, mais do que os pais. A disponibilidade é uma vantagem do velho, e isso logo é identificado pelos jovens.

Você continua  trabalhando intensamente, não é? 

Heloisa:  Durante a pandemia trabalhei o triplo. Daquela época em diante eu disparei. 

E isso tem a ver com o envelhecimento ou não?

Heloisa:  Claro que tem. Uma hora eu decidi: daqui para frente, vou fazer livro, não vou mais fazer pesquisa. Claro, para fazer livro você tem que fazer pesquisa, mas é muito diferente. Parei de fazer as pesquisas acadêmicas, que são mais sistemáticas. 

O que motiva você acordar de manhã para trabalhar? Você acorda pensando em quê? 

Heloisa: É a curiosidade. É a demanda. O povo da Universidade das Quebradas mandando zap o dia inteiro… Agora tem as artistas negras… Eu acho que eu criei um jeito de envelhecer mantendo vínculos, fazendo a nova geração andar. Transmitir a minha experiência parece urgente, quero botar para fora tudo que eu fiz, tudo que eu li, tudo que eu vivi … Uma limpeza de gavetas. Isso é bem urgente na minha cabeça.  Doar, inclusive, os livros. Cada um que vem aqui sai carregando dez livros. Eu quero zerar. É uma vontade muito forte. Eu fiz tanta coisa que está escondida, que está guardadinha. Quero botar tudo na rua. E isso é da velhice.

Você disse que a sua geração inventou a juventude.  A mesma geração está inventando a velhice?

Heloisa: Eu acho. Inventar é assumir o lado bom da velhice, que é o capital que se acumulou. No meu caso, são 84 anos de estrada. Imagina que eu vi, o que fiz, quantas pessoas conheci… É muita coisa. E as pessoas precisam assumir esse acúmulo. Em vez de só pensarem no que perderam, nas dores, perceber o que têm para oferecer. Entender que qualquer pessoa que viveu muito tem um capital. Qualquer pessoa ali na rua, o porteiro do prédio, tem histórias do arco da velha.  Não é o saber acadêmico, é o que você sabe da vida. Por exemplo, eu tenho mais de 1.500 receitas de cozinha. Só o tempo pode construir isso. Quando chegam e falam: “Não parece que você tem essa idade”, eu penso: pô, tô há 84 anos na estrada, correndo, correndo e você não está vendo nada!

O etarismo se baseia na ideia de que o velho não produz, não cria. Quando se valoriza a experiência como capital, o etarismo perde o sentido, não?

Heloisa: Não tem etarismo quando o foco é a experiência. O etarismo é muito circunscrito aos núcleos produtivos, à sociedade de consumo e consumista. Quando se fala com um grupo de pescadores, não tem isso. 

E na universidade? Existe a aposentadoria compulsória. 

Heloisa: Cada um sabe quando quer parar. Eu gostei da compulsória. Fiquei muito deprimida no dia, mas como continuei professora emérita, não perdi a conexão com a universidade. Parei de fazer as atividades que fazia: não dou mais aula, não participo de bancas de doutorado, não oriento pesquisas. Isso me permitiu trabalhar no que eu quero. Fui me dedicar mais à Universidade das Quebradas e agora estou pensando em um novo modelo para o PACC [Programa Avançado de Cultura Contemporânea, criado há 30 anos por Heloisa na UFRJ].  

O título de emérito não é um reconhecimento do capital representado pela experiência adquirida?

Heloisa: Sim, mas a emerência é concedida por meritocracia: o currículo lattes, quantos livros, o que publicou. É uma forma de avaliação muito pobre, faltam muitos elementos nos seus critérios. Falta considerar a experiência e atividade profissional que a pessoa desenvolveu. Ter passado décadas transformando vidas de alunos e sendo uma professora multiplicadora é muito mais importante do que escrever artigos. 

Você apontou que no mundo capitalista a produtividade é central e que o idoso é desqualificado por ser visto como improdutivo. Como valorizar a produtividade de uma pessoa mais velha? 

Heloisa:  A meritocracia é o critério de produtividade do capitalismo.  Mas existem outros critérios. Estou lendo o [Ailton] Krenak, um índio velho que é o saber encarnado. Em Krenak, o saber é ancestral. Assim como no feminismo negro, em que as referências sempre vêm da avó, da tataravó. Ou seja, vem da experiência do afeto, da experiência de vida. As culturas não europeias prezam esse saber. Produzir e transmitir afeto também é ser produtivo. Não é só acumulação de capital, é se deixar afetar também. Eu tenho encontros que mudam a minha vida. Encontro um pedreiro, um amigo de infância e opa, eu me preencho de uma outra coisa. Na velhice, você não compete mais. Não competir libera uma zona de conhecimento gigantesca. A velhice não compete, ela só dá e aprende. É muito bom.

 E esta troca pode ser um espaço de trabalho para o velho?

Heloisa: O lugar natural para quem já viveu muito é a consultoria. O lugar do pajé, do ancestral negro. O lugar da curadoria e do oráculo. Deveríamos construir carreiras que terminassem em uma consultoria. Para isso, é preciso saber bastante, articular redes, fazer coisas que o jovem não sabe que tem de fazer. O saber da experiência, que os jovens nem sempre tem, é parte de qualquer profissão. Se você contrata um pedreiro e ele não está conseguindo deixar a sua parede reta, juro que um mestre de obras antigo vai te dizer: “no meu tempo tinha um fiozinho que a gente esticava pra ver o prumo”. Ele vai ter truques que não são usados hoje. A pessoa tem de assumir, saber instrumentalizar e botar para fora. 

O Krenak, que você citou, tem uma frase que parece traduzir o que você diz: “A vida não é útil, é fruição”.

Heloisa: Isso, é maravilhoso. Tem uma hora em que você descobre que a vida não é útil. Mas este é o resultado da aprendizagem de uma vida inteira. Por exemplo, a diferença entre a relação com o filho e a relação com o neto é gigantesca. Quando os filhos nascem, a mãe está tentando se formar, procurando emprego, fazendo concurso … Está em plena batalha para ser ela mesma. Passa o dia inteiro trabalhando e volta carregada de culpa. Se resolve ficar com o filho, fica morta de culpa porque não fez o que tinha de fazer. Quando você tem um neto, você já aconteceu. Tem mais disponibilidade para a criança. A qualidade do amor é diferente. Na minha época tínhamos filhos entre 20 e 30 anos, uma fase nevrálgica da vida. Agora, as pessoas estão tendo filho mais tarde, com 40 anos. Melhorou, pois os pais já estão mais estruturados, já sabem o que querem.

As pessoas têm mais liberdade na velhice?

Heloisa:  O indivíduo fica mais egoísta. A pessoa é generosa, distribui suas coisas, compartilha, mas se tiver de escolher entre ela e o outro, prioriza a si mesma. Antes eu queria mudar o mundo. Hoje eu quero mudar o PACC. Só fico agoniada com a questão ambiental, porque eu imagino os netos sem água. 

A expectativa de vida está aumentando, apesar da crise climática. Você gostaria de poder viver mais, além dos 100 anos? 

Heloisa: Não, porque a qualidade de vida não melhora. A ideia da dependência me assusta loucamente. A perda de autonomia não é brincadeira. Para onde vou, tenho de ir com alguém. Eu costumava ir dirigindo para minha casa em Vargem Grande, tranquila, sozinha. Mas troquei meu jipe por um maior, para caber os cachorros. O carro é pesadíssimo, não consigo dirigir direito. Tenho de ir com alguém. Aí é um terror. Agora eu sou a pessoa a ser cuidada, antes eu é que salvava os filhos dos perigos. 

Você acha que os filhos de certa maneira tornam os pais mais dependentes? 

Heloisa: Acho que não. Eles se preocupam. No meu caso, a fragilidade é real: eu não respiro direito, não ando bem. É muito difícil reconhecer a sua fragilidade. Você tenta adiar esse reconhecimento o mais que pode, mas tem uma hora em que não dá mais.

Como construir uma velhice potente? 

Heloisa: Olha, meu pai era sensacional. Ele era cardiologista e 90% da sua clientela era formada por velhos. Em todas as receitas, abaixo dos remédios e antes da assinatura, ele escrevia: “Não se aposente”. Acabava todas as receitas assim. É por aí. Aposentadoria é a perda do lugar social. A pessoa tem de continuar a ser útil, em um emprego, na família ou em algum outro lugar. E é preciso ter um compromisso com alguma coisa, que a pessoa não possa largar e dê algum dinheiro ou reconhecimento. Uma velhice reinventada é assumir o seu lugar e assumir o que você fez. E ficar contente com isso é melhor do que botox, vamos combinar. A memória é um capital maior do que o botox. A pessoa fica mais poderosa assumindo o seu lugar e o que fez do que com uma ruga a menos.  

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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