Os antigos já diziam: “pense duas vezes antes de falar”. Não demos ouvidos. Tanto que, na atualidade, convivemos com haters e tretas nas redes sociais, bullying nas escolas e assédio moral no trabalho. Felizmente, não foi só nos conflitos que nos desenvolvemos. Desde os anos 1960, psicólogos vem desenvolvendo métodos para aumentar a empatia e facilitar a comunicação produtiva. Essa é a especialidade da coach Marie Bendelac Ururahy. Formada em administração na França, seu país natal, fez especializações de Coaching, Psicologia e Psicologia Positiva em Harvard. Uma das bases do seu trabalho na empresa Be Coaching é a comunicação não-violenta – um método que ajuda o indivíduo a organizar a expressão de sentimentos, necessidades e demandas, facilitando a solução de conflitos. Nesta entrevista, ela explica como esse método pode levar à resolução de conflitos na família e em outros contextos, como as relações de amizade e de trabalho. “O conflito é inerente ao ser humano. O que precisamos fazer é criar uma conexão que permita chegar a um diálogo produtivo para resolver a situação e preservar a relação.”
O que é comunicação não violenta?
É um método criado por Marshall Rosenberg, psicólogo americano nascido em 1934. Ele cresceu num bairro violento de Detroit, onde havia muitos conflitos entre gangues, e sofreu bullying por ser judeu. Esse sofrimento o estimulou a buscar entender, por um lado, o que levava algumas pessoas a ter esse tipo de comportamento em relação a outras, por causa de fatores como raça, cor da pele e religião e, por outro, como minimizar essa violência. Dedicou a vida a esta pesquisa, fazendo experiências e testando conceitos. Ele começou a trabalhar em escolas que estavam acabando com a segregação racial e constatou que, com o método que havia desenvolvido, conseguia reduzir os conflitos e aumentar a empatia e a compreensão no grupo.
Quais são as bases deste método?
Rosenberg identificou quatro componentes que impactam a comunicação. O primeiro componente, que costuma gerar ressentimento, são os julgamentos. Por exemplo: eu liguei para você e você não atendeu. Se você se atém aos fatos, pode dizer: “Não consegui falar com você. Liguei três vezes hoje e você não atendeu.” Mas, se você coloca uma avaliação – “Eu te liguei três vezes hoje. Você não quis me atender” – isso já cria, em mim, uma reação defensiva. O segundo componente é a percepção dos próprios sentimentos. Talvez eu tenha urgência de falar com você e por isso tenha ficado irritada porque você não me atendeu. Sentimentos são, muitas vezes, provocados por fatos. O terceiro componente da comunicação não-violenta é a necessidade. É ela que, no fundo, determina como me sinto.
Pode dar um exemplo?
Em um sábado, estou em casa sozinha. Meu marido viajou há uma semana, estou me sentindo um pouco solitária e tudo o que quero é um pouco de companhia. Aí chega a minha cunhada, que eu adoro, de improviso, com um bolo pra mim. Eu fico super feliz por vê-la e ter alguém para conversar. Já em outro sábado, meu marido está em casa. Além disso, estou mal, com cólica e cansada. Tudo o que quero é ficar tranquila. Minha cunhada, como na outra ocasião, chega de improviso, trazendo um bolo. Mas, dessa vez, fico irritada porque ela quer conversar. Portanto, o que determina como me sinto é a minha necessidade em um certo momento. Não posso atribuir ao outro a responsabilidade sobre como me sinto. Na comunicação não-violenta, você assume a responsabilidade pelos próprios sentimentos, o que facilita preservar a relação com o outro.
Ou seja, é preciso entender a si mesmo, antes de avaliar o outro.
Exato. O método tem ainda um quarto componente: elaborar um pedido em linguagem positiva. Depois de reconhecer os fatos, expressar meu sentimento e identificar a minha necessidade, posso elaborar um pedido que abra caminho para uma solução. Para seguir no exemplo acima, eu diria à minha cunhada: “Olha, foi muito simpático você vir, mas estou passando mal, muito cansada e precisando ficar um pouco sozinha. Será que a gente pode se ver amanhã?”. Quando expresso como me sinto, a outra pessoa entende. Sentimento e necessidade são comuns a todos os seres humanos. É uma linguagem que conecta. Expressar sentimentos e reconhecer necessidades são o coração da comunicação não-violenta.
Mas, seguindo este método, não abrimos mão da espontaneidade e da franqueza nas relações pessoais?
É comum que as pessoas se sintam assim. Mas a ideia é realmente mudar a maneira como vemos e agimos em relação ao outro. A comunicação não-violenta é uma metodologia que propõe uma nova forma de se relacionar. É um recurso prático para evitar ou resolver conflitos. Quando a coisa começa a pegar, em vez de agir de modo automático e agredir o outro, eu posso dizer: “Pera aí! Deixa eu pensar como colocar as coisas para evitar me afastar e chegar a uma ruptura”.
Como isso funciona nas relações em família? Você pode contar algum exemplo?
Na verdade, eu comecei a estudar a comunicação não-violenta em profundidade devido a conflitos familiares. Foi um momento muito difícil, que envolveu uma pessoa da minha própria família. Ela tinha um desequilíbrio emocional e apresentava reações muito agressivas. Como era uma pessoa muito importante para mim, eu precisava lidar com ela da melhor maneira possível. O livro do Marshall Rosenberg me ajudou muito a evitar os conflitos e hoje temos uma relação muito boa. Posso afirmar que a comunicação não-violenta salvou nossa relação. E também ajudou muito na relação com o meu marido. Quando ele me atacava com julgamentos, eu procurava entender o que havia por trás: do que ele precisava. Há anos que não ouço um julgamento vindo da sua boca. As brigas foram se tornando cada vez menos frequentes graças ao uso dos recursos da comunicação não-violenta. A forma como nos comunicamos pode estragar uma relação, ou preservá-la.
O método também ajuda a se comunicar com os filhos?
Com certeza. Dizer coisas como: “Você é muito bagunçado, irresponsável, preguiçoso” só gera reações defensivas e ressentimentos. Se procuramos ser factuais, nossa fala pode ser: “As suas roupas estão no chão e eu fico muito incomodada com isso. É muito importante para mim ter ordem na casa. Preciso da sua ajuda. Será que você poder tirar suas roupas do chão e botar na máquina de lavar?”. Isso não quer dizer que a pessoa vá fazer o que se pede, mas a gente tem uma chance bem maior de obter sua boa vontade dessa maneira. O pedido oferece à pessoa uma escolha, o que atende à necessidade de autonomia e liberdade do ser humano. Ora, quando as necessidades do ser humano são atendidas, o resultado são sentimentos de bem-estar. Inversamente, toda vez que uma necessidade não é atendida, isso gera sentimentos de desconforto. É importante também entender melhor os conflitos. Em todos os conflitos, temos a configuração de três papéis.
Quais são eles?
Essa configuração foi definida por um psiquiatra americano, Steven Karpman e ficou conhecida como Triângulo Dramático de Karpman. O Triângulo Dramático de Karpman permeia todos os conflitos e sempre acaba em drama. Não tem uma peça de teatro que não acabe assim… Os três papéis são: a vítima, o perseguidor e o salvador. A vítima tende a se queixar, culpando o outro pelos seus problemas, sem assumir a responsabilidade e sem perceber a sua capacidade de resolvê-los. A toda vítima corresponde um perseguidor: alguém que também vai acusar o outro (a vítima), mas de forma mais intimidadora, que pode ser muito crítica, agressiva e humilhante. E tem o salvador. Enquanto a vítima não quer assumir nenhuma responsabilidade, o salvador assume toda a responsabilidade para si. “Deixa comigo, vou resolver”. Mesmo quando não tem os meios, nem competência, tempo ou recursos. Esses são papéis que estão presentes em todos os conflitos. A metodologia da comunicação não-violenta ajuda a sair desse Triângulo. No lugar de se queixar, você diz: “O que você está sentindo? Do que está precisando? Como eu poderia lhe atender?”. Ou seja, começa a buscar soluções.
Mas esses papéis são constantes ou mudam a toda hora?
Em um conflito, a mesma pessoa muitas vezes desempenha os três papéis. Eu passei por isso, numa relação profissional que, a partir da perda de confiança, tornou-se um conflito permanente. Uma simples pergunta minha era recebida como uma investigação. A pessoa começava a me julgar, dizendo: “Você quer controlar tudo?”. Aí já começava a se comportar como perseguidor. Depois ele se posicionava como o salvador: “Poxa, depois de tudo o que eu fiz pra vocês…” Reclamava de não ser reconhecido por ações que havia realizado por iniciativa própria. E eu dizia: você fez porque quis. Começava um bate-boca que não era produtivo e a gente não saía do lugar. Depois a pessoa se vitimizava: “Vocês me tratam sem respeito”. Uma mesma pessoa ora se colocava como salvador, ora como perseguidor e como vítima…
Como você lidou com esse conflito?
Essa pessoa tentou me manipular para atender aos seus interesses. Tentou me intimidar, fez ameaças, disse que faria campanhas nas redes sociais para desqualificar a minha instituição. Fez de tudo pra que eu mantivesse um negócio com ele. Em lugar de responder às acusações, procurei compreender e manter a calma. Eu pedia: “Entendo e respeito seu sentimento, só peço que fale comigo sem me atacar e que pare de me ameaçar”. E jogava para ele a responsabilidade: “Realmente o contrato foi ruim, a gente errou, sim. E aí, o que você propõe? A gente pode consertar?”. E ele continuava ameaçando e se vitimizando. Nada do que eu propunha funcionava. Então chegou um momento em que disse: “Bom, a gente vai parar por aqui”. É preciso saber colocar limites. Ter empatia não quer dizer aceitar tudo o que o outro faz.
Como o método ajuda nos conflitos?
A comunicação não-violenta e o domínio desses papéis permitem manter uma postura não-agressiva, no lugar de entrar em um jogo tóxico, que vai trazer desgaste sem resolver a situação. Numa empresa, muitas vezes esse jogo oferece riscos profissionais, pois nem sempre os demais compreendem o que está acontecendo. Um cliente meu, um executivo, me procurou, porque era sempre atacado por uma pessoa. Só que ela se vitimizava e invertia os papéis, fazendo parecer que era ele quem a perseguia. Quando ele reagia e contra-atacava, os outros passavam a vê-lo efetivamente como perseguidor. Juntos, desenvolvemos uma estratégia para obrigar essa pessoa a se revelar. Quando você não morde a isca do outro e mantém uma atitude não agressiva, chega um momento em que fica evidente que a pessoa não está falando a verdade.
O método da Comunicação não-violenta foi desenvolvido a partir do trabalho em escolas. Ele é adotado em escolas hoje?
No Brasil tem sido difícil levar o método para as escolas. Entretanto, sei de experiências feitas na França. Conheço uma escola em que as crianças, depois do recreio, colocam no papel os seus problemas, num livro em que registram seus pedidos. Participam também de rodas de diálogo em que são convidadas a expressar suas necessidades e sentimentos. O projeto começou por iniciativa de uma amiga minha, que é professora. Ela me contou que, depois do recreio, costumava gastar 50% do tempo de aula resolvendo conflitos. Com o uso do método, esse tempo caiu para 10%. Quando acontece alguma briga, os alunos já sabem que terão o apoio do professor para resolver o conflito e estabelecer o diálogo. Assim, eles rapidamente voltam a estar disponíveis para aprender, mental e emocionalmente. A diretora da escola viu tanta diferença entre a turma dela e as outras, que pediu que todos os professores começassem a estudar o método e a praticar a comunicação não-violenta com seus alunos.
Vivemos um momento de grande polarização na sociedade brasileira. As redes sociais são marcadas pelos conflitos, que costumam resultar em muita violência verbal. Por que estamos vivendo isso de uma maneira tão intensa? A comunicação não-violenta poderia reduzir esses conflitos?
O conflito é inerente ao ser humano. Nas redes sociais, cada um coloca sua opinião, muitas vezes impregnada de julgamento. Não há empatia em relação ao outro. Eu vivi uma situação interessante de conflito numa rede social. Em um grupo ligado à comunicação não-violenta, alguém fez um comentário muito forte, condenando as pessoas que cobram pelas consultas e cursos. Alguns facilitadores defendem que não haja cobrança e que o cliente doe o que achar justo. Eu me senti atacada. Pensei que seria importante explicar minha posição e a pessoa respondeu de forma pior. Alguns colegas me ofereceram apoio. Consegui me acalmar e comecei a enxergar os motivos por trás da crítica. Essa pessoa tinha necessidade de inclusão, de ter acesso a cursos que nem sempre podia pagar. Entrei diretamente em contato com ela. Dei esse passo porque percebi que ela não iria fazer isso, Pedi desculpas pelo que escrevi. Ela tinha atacado primeiro, mas, se eu ficasse nessa posição, o que eu iria conseguir? Nada. A partir do momento em que recebi empatia, pude lhe dar empatia de volta. Restabelecemos nosso relacionamento.
No seu trabalho como coach, tem questões que são mais frequentes? Temas que se repetem?
Já vi muitas pessoas que assumem o papel de salvador, fazendo mais do que podem. Tive uma cliente que sempre fazia mais e mais no trabalho, para poder ter reconhecimento. Só que o reconhecimento não viria dessa maneira. O importante não era fazer mais, era fazer diferente. O salvador se esgota por fazer demais, dar o que o outro às vezes não precisa, e muitas vezes não recebe o reconhecimento em troca. Então ele se frustra e se esgota. Este é um caso muito frequente. Outras pessoas têm autoestima baixa, ou pouca autoconfiança, e assumem a posição de vítima por não perceber como podem resolver os seus problemas. Neste caso, o coaching ajuda a aumentar a autoestima e a autoconfiança e consegue valorizar a força da pessoa. Assim, ela consegue enxergar um caminho e sair deste lugar de vítima, assumindo a sua própria responsabilidade.
A mudança vem sempre a partir do autoconhecimento.
Se eu não tenho noção do que está acontecendo dentro de mim, como vou conseguir buscar soluções? Não vou conseguir nem contar o que eu preciso. O primeiro passo é trazer à consciência o que está acontecendo dentro da gente e buscar compreender o que está acontecendo no outro. Eu tive um relacionamento de trabalho muito conflitivo. Então, numa ocasião em que a pessoa me atacou, ao invés de contra-atacar, perguntei: “Do que você está precisando? O que eu posso fazer por você?”. Percebi que ela tinha necessidade de ter sua opinião ouvida, de participar mais dos processos. E propus: “Se a gente se reunisse uma vez por semana, isso lhe atenderia?”. Com isso, aquela pessoa, que antes só gerava conflitos, tornou-se a mais colaborativa da minha equipe.
A cultura brasileira não favorece a linguagem direta nas relações. Tendemos a esperar que o outro adivinhe o que queremos. Nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas dizem “não” com muita clareza. Aqui nós evitamos essas negativas claras. Concorda?
Concordo. Quantas vezes vejo conflitos crescendo e relações se desfazendo porque as pessoas, por medo de magoar o outro, não falam o que sentem diretamente. É uma ironia: por não querermos magoar o outro, acabamos magoando muito mais.
Como é que você compara as culturas do Brasil e da França no que diz respeito a essa capacidade de comunicação, de empatia, de ser mais ou menos violento?
O que me chamou muita atenção, e me fez gostar muito de morar aqui, é a maneira de se relacionar do brasileiro – eu sempre falo brasileiro, mas na verdade, como moro no Rio, estou falando do carioca. O brasileiro tem um cuidado com a relação muito maior do que o francês. O francês costuma criticar muito. Eu odeio fazer generalizações, mas são diferenças culturais que observei. O francês também fala “não” com mais facilidade do que o brasileiro. Muitas vezes, o brasileiro pode dizer “sim” quando, no fundo, o coração está dizendo “não”.
Entrevista concedida a Anabela Paiva