A maioria das mulheres – e dos homens – concordaria com a afirmação de que a entrada das mulheres no mercado de trabalho reduziu a desigualdade de gênero. Bila Sorj, socióloga e historiadora, pensa diferente. Professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e uma das pioneiras dos estudos de gênero no Brasil, ela aponta para o fato de que o desempenho de atividades remuneradas não eximiu as mulheres de permanecerem como as principais responsáveis pelas tarefas domésticas. Segundo dados do IBGE de 2017, as mulheres empregadas trabalham 3 horas semanais a mais do que os homens. Embora seus companheiros tenham jornadas mais longas no emprego (41,1 horas semanais), eles dedicam menos tempo aos cuidados com a casa e a família (10,5 horas por semana). Já as mulheres, apesar de cumprirem uma jornada remunerada mais curta (36,5 horas semanais), investem 18 horas por semana, em média, nos afazeres domésticos. Coordenadora do NESEG – Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero da UFRJ, Bila Sorj acredita que, para equilibrar essa relação, o Estado e as empresas precisam estabelecer políticas de apoio às famílias no cuidado de crianças e idosos. “Está na hora de reduzir a jornada de trabalho”, acredita.
Como as mudanças no trabalho e no mercado estão impactando o cotidiano das famílias?
A principal mudança no mercado de trabalho, sobretudo a partir dos anos 1980, foi o crescimento da participação das mulheres. Isso alterou completamente a noção tradicional da família, que era composta por um provedor e uma cuidadora. Hoje, as famílias têm dois provedores e uma cuidadora. Ou seja, a cuidadora continuou sendo uma só: a mulher. Elas estão cumprindo a jornada no mercado de trabalho e continuam a realizar o trabalho não pago em casa. Isso se transformou em um grande problema social, pois impôs uma desigualdade de gênero muito grande. No Brasil, as mulheres trabalham mais do que os homens, quando se soma o trabalho doméstico e o trabalho no mercado.
Mas os homens não estão aprendendo a compartilhar esse trabalho?
Pesquisas como a PNAD mostram que, no mundo todo, o aumento da participação masculina nas tarefas domésticas é muito pequeno e cresce em ritmo muito lento. O envolvimento masculino no trabalho de casa é muito limitado. Eles praticamente não participam do trabalho mais rotineiro e menos criativo – cozinhar, lavar, passar, arrumar. A atuação dos homens acontece principalmente na relação com as crianças, em função da valorização social do papel do pai presente, que cuida e orienta.
Até recentemente, muitas mulheres de classe média contavam com uma ajudante para dividir as tarefas domésticas. Com a mudança da legislação do trabalho doméstico, essa ajuda se reduziu?
É incrível, mas, na verdade, o número de domésticas não diminuiu. Segundo dados de 2017, temos 7 milhões de empregados domésticos no Brasil – em 2015, eram 6.2 milhões. A grande maioria desse grupo é de mulheres. Durante o período recente de crescimento econômico, esse contingente diminuiu um pouco mas, no Brasil, o trabalho doméstico ainda é uma das principais ocupações das mulheres, responsável por 14% dos empregos formais femininos. A novidade que se constata é outra: depois da nova legislação, o número de domésticas mensalistas diminuiu e houve um aumento das diaristas.
Como a necessidade de garantir o cuidado de filhos e idosos, neste contexto de mulheres trabalhadoras, está transformando as famílias e a sociedade?
Uma mudança importante foi a adoção da creche para os filhos pequenos. No Brasil, por muito tempo, mandar os filhos para a creche era um atestado de pobreza ou de incapacidade da mãe. Isso mudou radicalmente. Hoje a mulher tem de se justificar por não ter colocado os filhos na creche. Mas, no Brasil, ainda não nos colocamos o desafio de pensar o cuidado das crianças e dos velhos como uma questão a ser enfrentada pela sociedade. Muitos países da Europa, como os da Escandinávia, caminharam para a desprivatização do cuidado.
Que soluções foram adotadas no caso dos filhos?
Existem, por exemplo, licenças parentais bastante longas, em que a mãe fica um período e o pai fica outro. No Brasil, estendemos a licença maternidade, mas continua a existir uma defasagem muito grande em relação à licença de paternidade. Em outros países, a legislação trabalhista leva em conta que o trabalhador tem família. É possível ter licença para levar as crianças ao médico, por exemplo. Além disso, há escolas e creches a tempo integral, que chegam a ultrapassar os horários convencionais de escola, para que os pais possam ir buscar os filhos um pouco mais tarde. Há ônibus escolares, para que os pais não precisem ficar horas no trânsito. São sociedades que há muito tempo estão tentando socializar os cuidados, como um recurso para que haja alguma igualdade nas condições de trabalho de homens e mulheres.
Você vê a possibilidade de que programas desse tipo sejam implantados aqui no Brasil?
Na campanha eleitoral para presidente e governadores, todos os candidatos foram favoráveis a escolas e a creches a tempo integral. É um serviço que deveria ser obrigatório; não se pode imaginar diferente. Certos serviços precisam seguir um padrão que a sociedade considera justo. No hospital, não se pode botar dois pacientes numa mesma cama, pois a sociedade considera isso intolerável. Do mesmo modo, para a educação, a escola em tempo integral seria um passo fundamental.
As fronteiras entre o trabalho realizado domesticamente e o trabalho formal estão mais fragilizadas. Com a internet e os novos meios de comunicação, as pessoas estão começando a ocupar o espaço doméstico para trabalhar. Isso pode ter uma influência na dinâmica das famílias?
O trabalho à distância está sendo mais utilizado pelos homens do que pelas mulheres. Quando o homem vai trabalhar em casa, a família considera que ele está trabalhando; quando a mulher trabalha em casa, há uma certa indiferenciação entre o que ela está fazendo para fora e a presença dela na casa. Quando é o homem que trabalha em casa, toda a família respeita, se faz silêncio. Já no caso das mulheres, elas relatam que não é assim: mesmo quando estão no quarto fechado, os filhos entram, a empregada, todo mundo abre a porta. Então, preferem ir para o escritório e sair desse espaço doméstico.
Como vai ser o futuro do mercado de trabalho? Quais são as perspectivas de transformação dessas relações de trabalho entre os gêneros?
Estamos indo pra uma sociedade de autônomos. As relações de trabalho como a gente conhece, de subordinação, assalariadas, serão cada vez menos frequentes. Até as empregadas domésticas terão de se tornar MEI (microempreendedoras individuais). As cuidadoras, hoje, já funcionam assim. Essa situação jurídica, me parece, vai se expandir muito. Isso implica em muitas perdas de direitos: haverá, por exemplo, uma extensão da jornada de trabalho. Para dar conta dos produtos que você se comprometeu a fazer como autônomo, vai ser preciso trabalhar um número de horas muito maior. Além disso, teremos uma presença muito forte da tecnologia e da automação e um crescimento muito grande do setor de serviços.
A tecnologia também criou nos profissionais a obrigação de estar sempre conectados e de dar retorno imediato às demandas, mesmo à noite ou nos fins de semana. Como isso impacta a vida da família?
Hoje há uma interpenetração do trabalho e da família. Não são mais espaços separados. E, na medida em que as pessoas forem autônomas, grande parte das suas relações sociais estarão permeadas pela ideia de que podem ser uma janela de oportunidades de trabalho. De alguma maneira, isso acabará definindo uma sociabilidade seletiva, afetando também a qualidade das relações. Eu tenho um amigo que está na área de entretenimento. Obviamente, é uma área muito competitiva. Meu amigo diz que, quando tenta marcar um jantar com algum amigo, ele responde: “Só posso confirmar meia hora antes”, uma vez que sempre pode surgir alguma coisa de trabalho, que ele não pode perder. As pessoas estão indo para encontros, para festas, na perspectiva do trabalho. O lazer e o trabalho já não se separam mais.
Mas isso não foi sempre assim: ir a festas para fazer contatos?
É, mas está se generalizando. Uma sociedade em que as pessoas são prestadoras de serviços, em que você perdeu seu estatuto de assalariado e precisa, a cada dia, batalhar por um contrato, uma proposta… é uma sociedade em que as pessoas vivem correndo atrás de oportunidades, literalmente.
Os jovens também não conseguem se imaginar vinculados a uma empresa por longo prazo. Nesse momento de valorização do individualismo e da mudança, a pessoa entra em um emprego já pensando em sair um ou dois anos depois.
Os jovens sabem que não existe mais emprego pra vida toda. Aquele cara que entrava numa empresa com 18 anos, e se aposentava nessa mesma empresa com 70, não existe mais. As empresas se renovam, querem cada vez gente mais jovem. E os jovens também estão cada vez mais estimulados à criatividade, a produzir coisas novas. Hoje a educação investe na ideia de ser autônomo, criativo, ir à luta, contar com você mesmo. Há décadas atrás, a gente não via isso. Na educação, na televisão, nas mídias, vemos o incentivo a um novo sujeito, com iniciativa própria, individualista. O discurso é: “você é capaz de fazer um monte de coisas, sem instituições, sem organizações, pelo seu próprio esforço e dedicação”. Isso está sendo incutido nos jovens. O problema é que nem todos são ou serão tão criativos. Uma boa parte deles vai se frustrar.
A fragilização dos laços de casamento também está relacionada a esse contexto de relações momentâneas, em que a permanência não é mais um valor?
Permanecer em um casamento em função de algum valor externo a você mesmo – os votos na igreja, o olhar da família – é cada vez menos frequente. Cada vez mais, as decisões são tomadas em função de uma métrica individual: “É bom para mim”, “Não é bom para mim”, “Estou satisfeito”, “Não estou”, “É assim que eu quero”, “Não quero”. A independência econômica das mulheres também coloca a possibilidade da separação como algo muito mais real. Hoje, menos da metade das famílias são compostas de um casal com filhos. Mais de um terço das famílias brasileiras são monoparentais femininas, ou seja, formadas por mãe e filhos. As demais são pessoas morando sozinhas, um percentual que cresceu muitíssimo, especialmente com o aumento da população idosa.
O número de famílias que está optando por não ter filhos está crescendo?
Segundo os dados da PNAD, sim. Estão aumentando as famílias constituídas por um casal sem filhos, em que os dois trabalham. Isso mostra a prioridade que as pessoas estão dando ao mundo do trabalho. Essas mulheres estão priorizando a vida profissional e ter filhos é um obstáculo a essa realização, que, pelo visto, para elas, é muito completa. Esses casais com dois provedores vivem muito bem, têm um padrão de vida altíssimo. É um padrão semelhante ao dos casais gays, que são grandes consumidores de turismo e outros serviços.
A figura do chefe de família continua a existir?
A autoridade dele está cada vez menos importante. Ainda é relevante, mas não é como no passado. O Estatuto da Criança e do Adolescente permite à criança contestar a autoridade do pai e denunciar o pai abusivo. O Código Civil retirou a noção do pátrio poder. Em termos do enquadramento legal, esse chefe de família está cada vez menos forte. Obviamente, há certos costumes e hábitos que são para além do que rege a legislação. Os números assustadores de violência doméstica no Brasil mostram que persiste a figura de um chefe que considera ter até direito ao corpo da mulher dos filhos. Apesar de tantas mudanças legais, a mentalidade patriarcal ainda é muito presente.
Essa agressividade masculina está relacionada ao fato de que o homem é tradicionalmente o provedor?
Quanto menos provedor, mais agressivo, porque realmente ele não sabe se reconhecer de outra maneira. A provisão é tão parte da identidade masculina que, se esse papel for menos importante comparado ao da mulher, provavelmente, o homem vai tentar afirmar a masculinidade de uma outra maneira, que é através da representação desse poder sobre o corpo da mulher.
Essa é uma característica mais forte na sociedade brasileira?
Eu acho que sim. Os índices de violência doméstica no Brasil são superiores aos da Europa e Estados Unidos. A quantidade de mulheres espancadas e assassinadas é maior do que nunca. Não se sabe se porque as mulheres estão denunciando mais, ou porque o fenômeno é mais expressivo. É um fenômeno da família brasileira muito presente. Eu fico chocada, nas minhas pesquisas, quando peço para mulheres das classes populares contarem as suas histórias de vida familiar. Quase todas relatam ao menos um episódio de violência. A ponto de muitas não quererem, quando se separam, a volta desse marido, apesar do esforço todo das políticas de incentivar que o pai retorne à casa, através de programas como Pai Presente, Pai Responsável. Mas as mulheres que eu tenho entrevistado não querem que esse homem volte.
Que política pública importante poderia reduzir a desigualdade no trabalho?
O Estado tem de ter políticas para enfrentar o envelhecimento acelerado da população. Os programas de acompanhamento dos idosos são pouquíssimos. Os abrigos eram uma calamidade e foram esvaziados. Retornaram esse idoso pra família, o que, obviamente, têm prejudicado muito as mulheres. São duas pontas do cuidado, os filhos e os pais, que impactam sobre as condições de trabalho das mulheres e precisam de políticas. Uma ideia é que as próprias empresas formulem políticas de conciliação de trabalho e família. As empresas teriam condições de oferecer, por exemplo, horários e jornadas flexíveis, possibilidade de trabalho em casa, aumento da licença paternidade….
Como imaginar a implantação dessas medidas em um momento em que as relações de trabalho estão mais precárias e muitas empresas trabalham com mão de obra terceirizada?
As grandes empresas estão se dando conta de que garantir ao trabalhador uma tranquilidade em relação à família resulta em maior produtividade, dedicação, e identificação com os objetivos da empresa. Também é um fator de atração e retenção de mão de obra mais preparada. Tudo isso é mensurável. Este é um campo importante para que as empresas atuem. Por fim, outra medida é o mercado reduzir a jornada de trabalho. Eu acho que está na hora… É inacreditável que a gente mantenha essa jornada quando você tem toda essa demanda de cuidados, dos idosos e filhos.
Entrevista concedida a Anabela Paiva