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Foto de Sergio Besserman Viana

“Precisamos tomar decisões para os nossos filhos, netos e bisnetos”

O economista Sergio Besserman adora contar histórias – e se dedica a isso. Nesses tempos apressados, em que a objetividade é virtude venerada, o carioca de 61 anos ilustra suas ideias com citações de filósofos e cientistas sociais. Tempera a filosofia com piadas e um ou outro palavrão. É com essa mistura de humor e erudição que Besserman fascina audiências, tanto como professor da PUC, como em suas palestras sobre mudanças climáticas e sustentabilidade, tema a que se dedica desde 1992. Com frequência, o presidente do Instituto Jardim Botânico, deixa o seu gabinete para falar a jovens em escolas e centros culturais de bairros de periferia. “Isso é o meu ativismo. É o mais importante”, diz Besserman. Ex-diretor do BNDES, e ex-presidente do IBGE, vencedor de prêmios como o BNDES (por sua tese de mestrado) e Faz Diferença, o economista tem uma certeza: economia e hábitos terão de mudar radicalmente para reduzir o impacto sobre o meio ambiente. A questão é se essa transformação será feita nas próximas décadas. “Se não fizermos agora, terá de ser feito de forma muito mais acelerada, e com muito mais perturbações climáticas, econômicas e civilizatórias”, prevê. Por outro lado, Besserman considera a crise ambiental como o catalisador de uma revolução profunda, comparável ao Renascimento e ao Iluminismo: “Pela primeira vez, o conhecimento humano está dizendo para nós: tem limites”.

Você costuma dizer que é inevitável que a economia mundial faça uma transição para um modelo de baixo carbono. O que isso quer dizer, na prática?

A utilização de todo ou qualquer serviço que emita gases de efeito estufa terá de acabar ou ser substituída. A mobilidade será, basicamente, coletiva. Mobilidade individual terá de ser carbono zero: veículos elétricos, cuja bateria seja alimentada por uma matriz energética boa, que não envolva gases produtores do efeito estufa. Essa mudança envolve, por exemplo, os materiais que usamos na casa – hoje já existem madeiras com resistência semelhante ao aço. Os materiais que emitem gás vão se tornar mais caros. Os preços deverão refletir o custo de esquentar o planeta. Nos Estados Unidos, já estão produzindo comida em laboratório. Com vegetais, soja, milho e muita tecnologia, eles produzem um hambúrguer mais barato do que o comum, e que nenhum americano consegue diferenciar do hamburger de carne. No futuro, vamos comprar no supermercado, normalmente. A escolha dos alimentos vai levar em consideração o quociente da tonelada de proteína por emissão de gases de efeito estufa. No caso do boi de pecuária extensiva, dominante no Brasil, é 36; no confinado, é 6; o porco é 5; o frango é 4; o peixe é menos ainda. Se o carbono for precificado, se essas emissões custarem dinheiro, carne bovina será algo para comer de vez em quando, no aniversário.

Qual o papel da família nas transformações necessárias para criar um mundo sustentável? Em que medida esse núcleo pode gerar mudanças?

A família de hoje em dia, com sua enorme diversidade e com a diminuição do patriarcado autoritário, sempre tem um papel muito importante, porque é onde as pessoas vivem grande parte de seu cotidiano e onde qualquer experiência fala às nossas emoções diretamente. Duas realidades trazem para as famílias do mundo as tensões da crise de sustentabilidade: a convivência entre gerações e o fato de que nelas se dá grande parte do consumo de bens e serviços.  Os jovens, dentro das famílias, tem sido uma força de mudança no comportamento, seja pela sua compreensão dos desafios contemporâneos, seja pela adoção de hábitos de consumo mais conscientes. E essas mudanças impactam diretamente as empresas e os que buscam sintonia com os eleitores.

Você acha que pais e avós estão entendendo e levando a sério os questionamentos das novas gerações?

Não. Penso mesmo que os fenômenos políticos que estamos assistindo em todo o mundo estão ligados a um certo desespero, de parte dos de mais idade, ao assistirem a inevitável transformação radical da cultura humana estabelecida nos últimos três séculos.

Vai ser preciso mudar a maneira como consumimos?

O consumo pelo consumo, que visa exibir status social, será considerado algo execrável. O que vamos querer consumir é o tempo. O que mais vamos desejar não esquenta o planeta: encontrar um amigo, flanar, pensar, dar uma caminhada.

Isso pode melhorar a qualidade das relações familiares?

Mais tempo, mais conversa, mais emoções compartilhadas: é muito possível que sim. Certamente a família já é e será cada vez menos patriarcal e autoritária. Mas, citando T.S. Elliot, só existe o experimentar, o resto não nos diz respeito. Muitas novas formas de família continuarão a surgir, provavelmente.

Tradicionalmente, o excesso e a ostentação são símbolos de sucesso e status. O carro novo para o filho, a festa com comida farta, as roupas na última moda. O que pode entrar no lugar para representar o sucesso e o afeto?

Simbolizar é parte fundamental da natureza humana. O que estamos representando nos símbolos é definido pela cultura. Uma cultura voltada para ter sempre mais e crescer a qualquer custo busca símbolos de afeto e sucesso na demonstração ostensiva do poder de comando do dinheiro. Uma cultura mais voltada para a experiência humana, para o
ser e não o ter, forçosamente buscará outras referências, como conhecimento, empatia e criatividade.

Todos os que se preocupam com as mudanças climáticas são confrontados com escolhas diárias no cotidiano: compro carro? Aceito a sacola do mercado? Bebo aquele suco embalado em plástico?  Como você, Sergio, resolve esses dilemas?

Ninguém deve se sentir culpado por seus desejos e hábitos. Eu, por exemplo, jamais abriria mão da minha vida com o Bolo, meu cachorro recentemente falecido. Certamente ele aquecia muito o planeta. Ração, banho, passeio de carro para lugares distantes, etc. O errado é não estar nos preços o custo de aquecer o planeta. Eu deveria ter pago mais caro pelo desejo de compartilhar a vida com ele. Por outro lado, muitas das nossas escolhas, sejam de hábitos, sejam de consumo, às vezes refletem superficialidades, ostentação, ignorância dos impactos, etc. Nesse caso, estamos fazendo mal à vida e recebendo esse mesmo mal de volta, sob a forma do apequenamento de nossos espíritos. A resposta, tanto para as nossas escolhas pessoais na vida cotidiana, como para a parte de cada um no caminhar da história, é valorizar o conhecimento, o pensamento, a leitura, o debate.

É indiscutível o aquecimento do planeta. Mas permanece a polêmica sobre a participação humana no fenômeno.  Como você responde aos que acreditam que o aquecimento tem causas naturais? 

Não existe polêmica sobre a participação humana no aquecimento global através das emissões de gases de efeito estufa. Mais de 99% dos cientistas que trabalham e publicam em qualquer tema relacionado estão convencidos da influência antropogênica no aquecimento e, entre os restantes, apenas 0,4% discordam. Não é possível considerar esse quadro uma polêmica. Há mais de 20 anos que os modelos climáticos de supercomputadores, ao realizarem o exercício de “supor” que estamos em 1820, por exemplo, e estamos tentando prever o clima até 2001 (ano de um dos relatórios do IPCC ) erram bem se consideram só as causas naturais, erram menos se consideram só as causas antropogênicas e acertam quando consideram as duas em conjunto. Além disso, a física que estabeleceu, teoricamente e em experimentos de laboratório, que o acréscimo de CO2 na atmosfera aumentaria a temperatura do planeta, data de meados do século XIX. As primeiras contas quase exatas a respeito datam do final do mesmo século. As medições do aumento diário do CO2 na atmosfera começaram em 1957. A descoberta muito surpreendente na ciência seria se a realidade se mostrasse diferente do que a teoria previa e não o contrário. Vale comentar que muitos veículos da mídia erraram  muito na cobertura das mudanças climáticas. A imprensa é preparada, ética e profissionalmente, para explorar o contraditório. Mas o que deveria ser coberto seria o contraditório na ciência. Opinião de cientista não é ciência, é pitaco de bar. Ciência é quando há uma hipótese, ela pode ser testada, o teste pode ser repetido, as previsões da hipótese se confirmam ou não, etc. Grande parte da mídia, contudo, tratou o assunto comparando alguma pesquisa cientifica sobre o aquecimento global com opinião contrária de algum professor, dedicando o mesmo espaço, sugerindo uma divisão de opiniões a respeito que não existia e que hoje em dia, com o fantástico avanço da ciência nos últimos 20 anos, tornou-se quase grotesca.

O desenvolvimento das sociedades tem sido baseado no crescimento econômico contínuo. Como reconciliar isso com os limites do planeta?

O sapiens tem 300 mil anos. Esse crescimento contínuo foi nos últimos 300 anos, e isso foi maravilhoso. O capitalismo permitiu que a vida se tornasse boa e longa. Verdade é que a desigualdade ainda existe e está aumentando, o que é um problema gigante. O capitalismo não resolveu todos os problemas, e ainda gerou essa mentalidade limitada, de só crescer, crescer e crescer. O capitalismo vai continuar; a economia de mercado se mostrou muito eficiente e vai persistir. Mas as mudanças climáticas, junto com a crise da biodiversidade, introduzem uma cunha nessa história: mais, mais e mais não vai dar. Essa é uma das causas da resistência em aceitar as mudanças climáticas como uma realidade biofísica ou química. Se o planeta fosse dez vezes maior, a gente não estava discutindo nada disso.

Mudar o comportamento individual pode promover a sustentabilidade?

O comportamento individual é muito importante. Mas fica longe de produzir as mudanças de que precisamos. Quando dou palestras e alguém me pergunta “Mas o que cada um de nós pode fazer?”, eu digo: “Pode fazer um monte de coisas, mas a mais importante é política”. A ideia de que cada um atue como consumidor consciente é muito válida, mas também é preciso entender o que está acontecendo no mundo, conhecer os números e a gravidade da situação, juntar gente, conversar na família e no trabalho, ir para coletivos, coisas desse tipo. A situação é efetivamente grave. De 2020 em diante, o acordo de Paris começará a ser cobrado. As mudanças acordadas estão acontecendo? E a resposta já está dada: não, está longe. A situação é grave demais pra gente viver num mundo mágico. Mas o comportamento individual tem três importâncias muito grandes. A primeira é o testemunho. Fazendo a minha parte, posso exigir que façam a deles. Sem isso, você não tem autoridade para pedir que os outros também se mobilizem. Em segundo lugar, o consumidor tem um poder muito forte. Para as empresas, comprar máquina, ter galpão, é mole; difícil é ser confiável. Se uma Volkswagen usa um software para falsificar as suas emissões poluentes, como aconteceu nos Estados Unidos, o valor dela despenca. A empresa continua tendo as mesmas máquinas, a mesma tecnologia, mas a reputação foi por água abaixo. O consumidor pensa: “Se eles são capazes de fazer isso, será que eu confio no freio do carro deles?”.

E os jovens, estão à frente dessas mudanças?

No mundo todo, hoje, existem jovens que são lideranças climáticas, como a Greta Thumberg [jovem sueca que iniciou um movimento mundial de greves estudantis para exigir mudanças nas políticas sobre o clima]. No Brasil, está acontecendo algo impressionante. A garotada ligada em alimentação consciente está reduzindo tremendamente o consumo de carne, tanto por preocupações ligadas ao aquecimento global, já que a criação de gado desmata e emite metano em grande quantidade, como por preocupações com ética. Na verdade, a juventude está frente a um grande desafio: como equilibrar a grande quantidade de informação e a velocidade dos tempos atuais com a necessidade de recuperar um tempo mais lento e de acessar o saber e o conhecimento. Isso implica em leitura e em reflexão. Implica em ouvir os mais velhos – os sábios. Não para produzir soluções técnicas, mas por que isso significa ser feliz e ter liberdade. A luta dos jovens não é só para evitar que o planeta se aqueça, é também uma busca por ser livre.

De que os jovens buscam se libertar?

Do vazio de uma vida sem propósito e onde compaixão é vista como uma qualidade de alguns, não como o jeito humano de viver. Os jovens se perguntam espantados: a humanidade nunca foi sequer remotamente produtiva como hoje e nós não temos tempo para nada a não ser trabalhar (isso quando há emprego)? Que loucura é essa?

Nossas escolas estão conseguindo educar para as transições que precisaremos fazer, se quisermos preservar o planeta?

Muitas escolas têm exercido um papel importante em chamar a atenção para a degradação ambiental, mas não vejo um papel delas nessa revolução cultural que os jovens estão realizando no mundo. Não se trata de educação ambiental, e sim de ver a vida de uma nova maneira. São mudanças históricas. Mas as escolas podem ser relevantes ao desenvolver o espírito crítico e a capacidade de reflexão profunda. O caminho é preparar as crianças, não tanto para ter mais chances de obter empregos e renda, mas, principalmente, para aproveitar mais esse soprinho de tempo que é a vida e formar suas próprias opiniões, desejos e vontades.

Como você resume esse momento histórico?

Pela primeira vez, o conhecimento humano está dizendo para nós: tem limites. Tem limites. Pela primeira vez em toda história humana, temos de tomar decisões hoje, em 2019, para impedir cenários de elevado custo econômico e social e ambiental daqui 30, 40, 50 anos. Nós não somos assim. A gente nem vivia tempo suficiente pra isso. Nossa perspectiva sempre foi: eu vivo a minha vida, a geração que virá depois viverá a dela, e, possivelmente, será melhor. Mas agora nós temos a crise ecológica global e pela primeira vez precisamos tomar decisões para os nossos filhos, netos e bisnetos, sabendo que não é correto, não é decente, jogá-los numa situação de risco, e que as populações pobres do planeta serão as maiores vítimas. Essa questão é comparável ao Renascimento e ao Iluminismo, no sentido de construção do que é o próprio ser humano. Antes do Renascimento, a ideia do indivíduo, para quem o universo foi criado, não existia. No Iluminismo, a dúvida passou a ser mais importante do que a resposta. Antes, se alguém tinha dúvidas sobre alguma coisa, ia ao pastor, ao padre, ao rabino, perguntava, e ele dava a resposta. Essa ideia de que tem sempre algo a explorar, e de que cada vez que eu descubro uma coisa, tenho muito mais a descobrir, passou a ser a vida humana, num certo sentido. Agora, o desafio é assim: sei que a vida é curta, sei que a mortalidade existe, mas também sei que o que eu faço hoje vai afetar lá na frente. E assumo a responsabilidade por isso.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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