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Foto de Priscilla Fonseca

“É impossível permanecer fria quando o divórcio envolve disputa por crianças”

Uma das maiores advogadas brasileiras, a paulistana Priscila Corrêa da Fonseca é professora de Direito Comercial da Universidade de São Paulo e autora de vários livros sobre Direito Societário. Mas foi no Direito de Família que a profissional ganhou fama, a ponto de tornar-se conhecida como Priscila, a Rainha do Divórcio. Uma trajetória que começou em 1973, quando conseguiu a façanha de garantir a guarda de duas crianças para o pai, restringindo as visitas da mãe – sentença quase impensável na época. Chamada de implacável pelos adversários, Priscila Fonseca costuma atuar em causas milionárias, defendendo celebridades.  À frente do próprio escritório desde 1988, a advogada acumula 53 anos de carreira – começou a estagiar em 1969 –, já publicou cinco livros de Direito e dezenas de artigos. Nos momentos de folga, adora se dedicar à criação de cachorros e ao cultivo de mais de 5 mil orquídeas. Mas faz questão de dizer: “O meu hobby preferido é a advocacia. É o que me faz levantar de manhã”.

A senhora tem décadas de prática em Direito de Família. Ao longo dos anos, os motivos para as separações mudaram? Qual é a principal razão das separações?

Os motivos continuam os mesmos. Em primeiro lugar, a traição sempre foi e sempre será a principal causa de separação, pois o desgaste do relacionamento leva à traição. É difícil não levar.

E que outros motivos são comuns? Algum deles vem aumentando?

O alcoolismo e o uso de drogas também são fatores importantes para os divórcios e separações. A questão das drogas tem aumentado sensivelmente, tenho percebido isso no meu escritório de alguns anos para cá. Nesses casos, o divórcio acontece porque o vício do companheiro torna a relação intolerável. O casamento se torna impossível. As dificuldades financeiras também são motivo de conflitos, mas aparecem mais raramente como justificativa. 

A disseminação da internet e o advento das redes sociais levaram ao aumento do número de traições?

O uso do WhatsApp tornou mais fácil descobrir traições. Elas ficaram mais visíveis com a troca de vídeos e mensagens através dessas ferramentas. Por outro lado, a internet favoreceu o sexo virtual, que também conduz a processos de divórcio. É a chamada traição virtual.

Hoje muitas pessoas praticam os casamentos abertos, em que os cônjuges podem ter parceiros amorosos ou sexuais fora do casamento.  Para estas relações, a importância da traição realmente diminui? Ou isso é uma utopia?

Eu já tive muitos casos de divórcio, mas muito poucos no contexto de relacionamentos abertos. O que observei nesses casos é que o acordo acaba incomodando e causando o desgaste do casamento, levando à separação. A meu ver, é um modelo que não se sustenta. Mas esta é uma opinião baseada na minha vivência.

Na sua experiência, as diferenças religiosas e políticas causam separações? E as relações com familiares do casal, também podem causar discórdia e levar a um rompimento?

Nunca atendi a um caso de divórcio justificado por esse tipo de conflito. Mas pode ser que agora, nesse momento de polarização em que estamos vivendo, essa situação ainda possa aparecer. Mas até agora não tive um exemplo. Já a convivência com familiares, especialmente sogros e sogras, pode ser, sim, um problema. Irmãos e cunhados também causam situações delicadas. Os conflitos são frequentes e se agravam quando a família está inserida em âmbito societário. Vamos imaginar que uma pessoa se case com um dos sócios de uma empresa familiar, como uma usina de açúcar. O cônjuge morre e a pessoa entra na sociedade, e passa a ter de conviver com o sogro, que não a quer lá. É um problema grave.

Esta situação também deve gerar complicações sucessórias, não? 

Neste aspecto, coloca-se um caso que considero muito problemático, a concorrência sucessória. Quando você se casa com separação total de bens, se você se separa da pessoa, o que é dela fica com ela; o que é seu, fica com você. Mas se o cônjuge falece e ele é sócio, por exemplo, de uma empresa, o outro herda, porque tem a concorrência sucessória. Considero este o grande defeito do Código Civil: mesmo que tenha sido casado com separação total de bens, o viúvo ou viúva concorre à herança com os herdeiros do falecido. Não deveria existir isso. Se você é casado com separação total de bens, a separação de bens deveria valer em vida e na morte. Quando o novo Código Civil entrou em vigor, eu tinha filas aqui de pessoas integrantes de sociedades, principalmente de usineiros, porque as usinas geralmente provêm de fazendas, controladas por famílias há várias gerações. Essa gente toda vinha me consultar, perguntando: “Meu Deus, qual é a solução?”. 

E existe alguma?

Nós temos feito aqui no escritório um pacto de renúncia à concorrência sucessória, registrado em cartório.  Eu sustento veementemente a validade desse pacto, pois ele não estimula violar a regra que proíbe disputar a herança de pessoa viva. Pelo contrário, a pessoa que assina o pacto renuncia à herança. A doutrina admite, mas a jurisprudência ainda não se pronunciou sobre isso. 

Hoje muitos casais optam por não se casar no civil.

Isso vem acontecendo cada vez mais, porque não tem diferença entre casar e viver uma união estável. A lei equipara uma coisa à outra. Isso acaba gerando injustiças, pois o Código Civil tornou o cônjuge herdeiro necessário. Ou, pelo menos, quando casado com separação de bens, herdeiro em concorrência com os demais herdeiros. Essa circunstância acarretou inúmeras situações constrangedoras. Podemos pensar, por exemplo, no caso de uma família que não quer determinada pessoa em uma sociedade familiar, fechada. A pessoa não quer alguém cujo voto possa ter um peso importante e não pertença à família. E os filhos do casal também são herdeiros. Então, o que até então era uma sociedade familiar vira uma Torre de Babel. 

Já que falamos de filhos, alguns pais se queixam de que a Justiça favoreceria sempre as mães, dando a elas a guarda dos filhos.  Como a senhora vê essa questão? 

Numa separação, a residência fica com um dos responsáveis. E, em 80% dos casos, essa pessoa é a mãe. Ainda é difícil convencer um juiz que morar com o pai pode ser melhor para a criança do que que com a mãe. Mas esse percentual já foi maior. Os homens estão despertando para a função paterna, uma evolução bonita de ver.  O homem se conscientizou de que ele não é meramente um provedor e a Justiça percebeu essa mudança. Tanto que se estabeleceu como norma a guarda compartilhada, o que é diferente de residência compartilhada. A guarda compartilhada é o poder e dever que os reponsáveis – pai e mãe – tem de zelar pelos direitos e obrigações em relação aos filhos, de participar das suas vidas. Ao mesmo tempo, estão surgindo modelos novos, como é o caso da guarda nidal, em que a criança permanece em um endereço fixo e pai e a mãe se revezam na residência. Esse é um modelo interessante, mas mais adequado a casos específicos e transitórios. É mais fácil estabelecer esse sistema quando as crianças são pequenas. Além disso, como manter esse modelo se um dos recém-separados constitui um outro núcleo familiar? Eu acho que fica inviável.

Como alguém pode se preparar para um processo de separação do ponto de vista emocional e objetivo?

O aspecto emocional não é minha área. O que posso dizer é que mando embora muitas pessoas que me procuram e que considero que não estão em condições emocionais de se separar. Digo: “Vá procurar um terapeuta, prepare-se, quando estiver bem convencido ou convencida de que é a melhor opção volte aqui. Estou de braços abertos”. Do ponto de vista objetivo, se a pessoa pretende pedir pensão alimentícia, tem de preparar uma lista das suas despesas, provar ao juiz o quanto ganha e o padrão de vida da família. É preciso reunir uma série de documentos antes do divórcio para pedir ao juiz uma pensão. Para fazer a partilha, é preciso uma lista de bens.

Seu escritório também faz contratos de namoro. Quando esse instrumento é utilizado?  

Prefiro chamar esse documento de contrato de relacionamento. Ocorre que a linha divisória entre um namoro e uma união estável é muito tênue. Às vezes quem está vivendo uma relação não considera que seja uma união estável. Mas o juiz pode ter outra percepção. Para evitar que haja qualquer dúvida, fazemos um contrato de relacionamento em que o casal afirma: “Nós não temos uma união estável. Quando entendermos que existe entre nós uma união estável, faremos consignar isso em um contrato expresso. Se por acaso a nossa relação vier a ser entendida como uma união estável, fica desde já pactuado que nós desejamos que essa relação seja de regime de total separação de bens, com plena de separação.”

Esses contratos de relacionamento são muito adotados? 

Com a pandemia, eles se multiplicaram. Muitas pessoas que namoravam esporadicamente, só se viam nos finais de semana ou saíam para jantar uma vez ou outra, começaram a morar juntos. Hoje em dia, as pessoas que têm um patrimônio a preservar, depois de dois ou três meses de namoro, já procuram o escritório.

E quanto ao pacto antenupcial, em que situações é recomendado?

Quando há um patrimônio a preservar, inclusive para os herdeiros. Se alguém se casa ou vive uma união estável sem assinar nada a respeito, sem fazer um pacto antenupcial ou sem fazer um contrato estabelecendo um regime de separação ou comunhão total de bens, o regime adotado como padrão é o da comunhão parcial de bens. Se a pessoa quer, por exemplo, a separação total de bens, precisa garantir essa condição fazendo um pacto ou contrato de união estável prevendo isso.

Atualmente, alguns advogados de família não trabalham com advocacia contenciosa e pedem que seus clientes se comprometam a participar de um processo de mediação. A seu ver, essa advocacia consensual pode ser uma solução?

Isso se define caso a caso. Não necessariamente é preciso recorrer a um mediador para fazer uma separação consensual. O próprio advogado pode tentar e às vezes de forma extremamente competente. Aqui no escritório, 90% das separações que tenho ajuizadas acabam se convertendo em consensuais. Durante o processo, as pessoas abrem os olhos para aspectos que não chamavam a sua atenção antes e veem que brigar não compensa.

A senhora tem sido advogada em processos de divórcio de celebridades. Nesses casos, em que medida a atenção da imprensa pode influenciar uma decisão judicial? 

Nos meus casos a imprensa não influencia, porque os processos correm sob segredo de justiça. Os jornalistas não entram aqui no escritório. As secretárias estão autorizadas a dizer que não posso falar, pois estaria quebrando a regra do sigilo profissional. Acho que os juízes também respeitam a ética. Eles não se deixam influenciar pelos jornais. Ontem me surpreendi ao ver, no Instagram, um advogado anunciando a prisão de um doleiro por falta de pagamento da pensão alimentícia. Se ele for o advogado da mulher, nunca deveria ter publicado essa notícia.

Quais foram os casos mais difíceis que a senhora resolveu? Poderia nos falar um pouco sobre eles?

Eu não tenho exemplos específicos, mas os casos mais difíceis – é fácil responder sobre isso – são todos os que envolvem crianças. É um sofrimento absurdo. Casos que envolvem disputa pela guarda ou busca e apreensão de menor, quando um dos pais desaparece com a criança, são muito sofridos. Tem dias em que saio daqui arrasada. Chego a não dormir no fim de semana. É claro que eu acabo me envolvendo pessoalmente. Tenho décadas de profissão, mas é impossível permanecer fria diante de um conflito dessa natureza.

O fato de ser mulher fez com que enfrentasse alguma dificuldade no exercício da sua profissão? 

Trabalho desde 1969 e posso afirmar que só senti isso quando fiz parte da Associação dos Advogados de São Paulo, uma instituição que só recentemente veio a ter uma presidente mulher. Quando fiz parte da banca de concursos para o Ministério Público havia uma certa reserva em relação a admitir mulheres. Em outras esferas, não senti esse tipo de obstáculo. Na verdade, acho que ser mulher foi um fator importante para minha carreira. Numa situação de separação, disputa pela guarda dos filhos e em outros conflitos desta natureza, as pessoas – principalmente as mulheres – sentem-se mais acolhidas quando tratadas por uma mulher. É claro que isso depende do indivíduo. Mas o que aconteceu aqui no meu escritório? A mulherada começou a vir e os homens passaram a tentar chegar na frente. Eu atendo o cliente que chega primeiro. Depois de atender um, não posso atender o outro.

Muitas reportagens a descrevem como uma pessoa dura, implacável, que vai até o final. A senhora se identifica com essa imagem?

Ser um bom profissional não significa ser dura e implacável. Eu defendo como devo defender os clientes, dentro da ética e dos limites legais. Como eu já disse, ser dura e implacável nessa profissão é impossível. Não há condições.  Eu sofreria de alguma doença psiquiátrica, pois ficar insensível ao sofrimento alheio é muito difícil.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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