Seu filho está jogando no computador ao invés de estudar? Antes de dar uma bronca, olhe bem. Pode ser que ele esteja aprendendo matemática. Ao menos, se ele for um dos alunos conectados a uma plataforma de ensino, recurso que escolas começam a adotar para facilitar o aprendizado na sala de aula e além dela. Rafael Parente, PhD em Educação pela New York University (NYU) e criador da start up de educação Aondê, é um entusiasta dessas ferramentas. Como subsecretário de Educação do Município do Rio de Janeiro, entre 2009 e 2013, na equipe de Claudia Costin, Parente implantou na rede pública o Pé de Vento, um projeto de apoio à alfabetização baseado em jogos e personagens.
Em 2013, liderou a implantação do GENTE (Ginásio Experimental de Novas Tecnologias Educacionais), um novo modelo de escola, na favela da Rocinha. Aos 40 anos, o brasiliense mantém o canal Educação na Veia no Youtube e não economiza críticas ao ensino praticado na maioria das escolas: “As escolas não estão preparando as crianças para a vida e muito menos para o mundo”.
Qual a sua avaliação sobre o ensino como é praticado no Brasil?
Muitas escolas tem avançado na pedagogia e no conteúdo, mas ainda estamos muito aquém do que precisamos. Temos um currículo enciclopédico e esperamos que as crianças saibam responder e passem de ano. Não estamos ensinando as crianças a pensar, a resolver problemas do mundo real. Trabalhamos conteúdos isolados e damos provas decoreba. E a vida inteira aquele aluno não vai usar 10% do que decorou. As escolas não estão preparando as crianças para a vida e muito menos para o mundo.
Quais são as vantagens do uso da tecnologia no ensino?
Uma é a motivação das crianças e dos jovens. A grande maioria das escolas não dialoga com a criança e o jovem. É um ambiente ultrapassado em estrutura e equipamentos. Tornar a escola mais interessante é fundamental para aumentar o engajamento das crianças e dos jovens. A segunda vantagem é que isso permite quebrar os limites de tempo e espaço. Com a tecnologia e as redes sociais, o aluno pode continuar a aprender fora da escola, através de jogos, por exemplo. O terceiro ponto, e o mais importante, é que as plataformas digitais de ensino permitem conhecer os pontos fortes e fracos de cada aluno e a personalização do processo de educação, tanto no ensino fundamental quanto no médio.
Qual a importância da personalização? Como ela difere das formas tradicionais de relação com os alunos?
A partir do sexto ano do ensino fundamental, quando aumenta o número de disciplinas, os professores passam a ensinar em muitas turmas e a ter pouco contato com os alunos individualmente. Para avaliar os alunos, só as provas. Com o uso de plataformas digitais de ensino, é possível acompanhar o que cada aluno está aprendendo, além de detectar seus gostos e interesses. Não é segredo o fato de que quem mais nos conhece hoje é o Google: sabe para onde vamos, o que queremos, o que não queremos. O pulo do gato é utilizar a tecnologia de inteligência artificial desenvolvida para a venda de produtos online para nos auxiliar a conhecer melhor o nosso aluno. Com isso, podemos entender como construir um processo de aprendizado personalizado, através de plataformas adaptativas.
Como são essas plataformas?
Elas se adaptam ao nível do aluno que a utiliza e gera relatórios. A plataforma propõe uma questão sobre determinado assunto. Se o aluno acertou, vem uma pergunta mais difícil. Se errou, vem uma mais fácil. Se o aluno erra uma vez, a plataforma dá uma dica para o aluno. Se ele erra duas vezes, vem um resumo explicativo. A plataforma é um professor virtual. Ela dá suporte ao professor, para que ele possa trabalhar de forma personalizada com 20, 25 alunos. E permite atender aos interesses do estudante. Se a turma toda vai aprender frações e o aluno gosta de esporte, ele pode escolher aprender frações com problemas relacionados ao basquete. Este tipo de ferramenta é cada vez mais usado em países como Inglaterra, Coreia, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Finlândia…
Como surgiu esse projeto?
Quando eu era subsecretário de Educação do município do Rio de Janeiro, entre 2009 e 2013, juntamos as melhores alfabetizadoras da rede para pensar estratégias. Queríamos repensar o processo de alfabetização e letramento matemático a partir do que as crianças mais gostam: brincadeira, musica, artes, histórias, personagens e tecnologia. Criamos o Pé de Vento, um projeto ensinava Português e Matemática a partir de histórias com personagens e jogos. O resultado foi incrível e a receptividade de professores e alunos também. O sistema foi implantado em todas as escolas municipais do Rio de Janeiro com turmas de 1º ano.
Os professores estão preparados para essa mudança?
Ainda está muito longe do ideal. A formação de professores é um dos pilares da utilização dessas novas tecnologias na Educação. É importante levar em conta se eles se sentirão confortáveis com essa utilização. Outro fator é a motivação. É preciso provar que este recurso ajuda o trabalho do professor. Também é preciso olhar para a infraestrutura. Não adianta comprar computadores se as salas não têm tomada e a internet não funciona. De acordo com as pesquisas, só 1% das escolas no Brasil tem infraestrutura próxima do ideal: sistema elétrico e hidráulico funcionando, ambiente acolhedor e um computador para cada 3 alunos. Isso inclui as particulares.
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Então, como ampliar o acesso à tecnologia?
Com um recurso mínimo – um computador, projetor e caixa de som – você já pode usar uma plataforma. Um computador por escola, não por aluno. Com o computador instalado em uma sala de aula, faz-se um rodízio; cada turma utiliza 2 horas por semana uma plataforma instalada off-line. Ainda vai demorar muito para termos uma infraestrutura ideal na maioria das escolas, então precisamos trabalhar de forma que a tecnologia possa ser usada em diferentes realidades.
A personalização do ensino envolve outras mudanças pedagógicas?
Ela está relacionada ao protagonismo, tanto dos alunos quando dos professores. Existem várias estratégias, como a aprendizagem baseada em projetos, com base em temas escolhidos pelos alunos com o professor. A avaliação passa a ser contínua, pois as provas padronizadas não fazem mais sentido. E o estudante pode escolher como prefere ser avaliado.
Essa era a estratégia do Gente, a unidade experimental criada pela Prefeitura do Rio na Rocinha, em 2013. Como o projeto está hoje? Ele foi uma inspiração para outras escolas?
O Gente foi, sim, pioneiro no modelo integral, com a utilização de times e práticas de aprendizagem ativa, práticas que algumas das melhores escolas do Brasil vem adotando. A maior parte das características do projeto continuam. Uma grande mudança foi ver o professor como um mediador do aprendizado, não um especialista. Para esse professor, o mais importante é criar uma relação de afeto com o aluno e inspirar o estudante a perceber seu potencial e ter amor pelo conhecimento. Gostar de aprender, gostar da escola. Os alunos estudavam em grupos, chamados de família. Se o aluno não conseguia resolver um problema, primeiro o grupo tentava ajudar. Os estudantes se sentem menos envergonhados de falar que não entenderam algo quando estão trabalhando em grupo e tentando aprender juntos.
Como os pais dos alunos receberam tanta novidade?
Quando nos reunimos com as famílias da Rocinha, tínhamos receio de que ficassem com medo das mudanças. Mas todos apoiaram. Disseram: vocês são os especialistas, se estão falando que vai funcionar, a gente acredita. Depois outras famílias queriam levar os alunos para lá também.
É possível utilizar essa metodologia em grande escala?
É possível, mas não é um modelo muito barato: custa 15% mais do que uma escola regular. Exige um número maior de computadores e uma internet mais potente. Mas há elementos do Gente que podem ser replicados facilmente. Algumas escolas já começaram a usar os salões de aprendizagem, a quebrar paredes para criar espaços coletivos. É possível adotar projetos multidisciplinares na aprendizagem e transformar a escola em um lugar mais envolvente, mais colorido. O mais importante é que a gente passou uma mensagem muito clara de que as escolas podiam se reinventar, ir além do tradicional.
As famílias tem capacidade de acompanhar o que seus filhos estão produzindo nas escolas dotadas de tecnologia?
As famílias de classe alta e média conseguem fazer uma avaliação razoavelmente boa se a escola é transparente. As mais pobres têm bastante dificuldade de entender o que se passa na escola, pois muitas vezes os pais têm menos anos de escolaridade do que os filhos. Muitos são analfabetos funcionais. Já as crianças de classe média e alta aprendem muito nas suas famílias. A escola quase não tem trabalho com essas crianças.
Muitas escolas têm hoje ênfase no estímulo ao empreendedorismo. Isso não seria um estímulo à competitividade, em um ambiente que deveria ser de acolhimento e colaboração?
O empreendedorismo no ensino está ligado a estimular o aluno a fazer algo para impactar o mundo, mais do que aferir lucro. As gerações mais jovens estão buscando profissões em que possam causar uma diferença positiva no mundo. Quanto à competição, os alunos aprendem a competir naturalmente. Brincadeiras e esportes envolvem competição. Na vida, disputamos vagas em empregos, posições. Mas isso não exclui a possibilidade de ensinar o fair play e valores como justiça e solidariedade. É possível ensinar competição e colaboração. Uma coisa não exclui a outra.
Como você avalia a reforma do ensino médio?
A nova Base Nacional Curricular é um avanço. Tentaram priorizar a profundidade ao invés da quantidade de conhecimento. Mas ainda está muito longe de um currículo maravilhoso como o da Austrália. Lá, o currículo tem menos conteúdos, mas aprofunda muito mais e as disciplinas estão sempre conectadas. O que importa é: como implementar o aprendido na vida real? O que aprender é importante. Mas a verdadeira arte é como aprender.
O que falta para mudar a realidade do nosso ensino?
Temos pessoas muito competentes na gestão da Educação. Mas falta um pouco mais de ousadia. E existe muita ideologização. Quando você faz mudanças significativas, surgem reações fortes. As universidades estão muito relacionadas às associações profissionais do setor, que resiste a mudanças de paradigma. As universidades teriam de se reinventar se fizéssemos as mudanças grandes de que precisamos. Também há muito lobby na definição do currículo e dos livros didáticos adotados. Por exemplo: as editoras já investiram em fazer livros de Sociologia. É claro que não gostam de ver a Sociologia deixar de ser obrigatória no currículo do Ensino Médio. Também atuam grupos de interesses, como os que defendem o ensino religioso no sistema público.
Qual é a nova tendência de inovação em Educação?
As competências sócio emocionais agora estão sendo trabalhadas também na escola: comunicação, criatividade, pensamento crítico, resiliência, inteligência emocional. James Heckman, vencedor do Nobel de Economia, mostrou que essas competências não só impactam na aprendizagem das competências cognitivas, mas são muito mais importantes para o sucesso na vida do que o conhecimento técnico.
As escolas privadas diferem muito entre si .O que você aconselharia aos pais na hora de escolher a escola para seus filhos?
Primeiro, não escolha a escola apenas com base apenas no sucesso no Enem. Uma boa escola deve ter um currículo dinâmico e vibrante, que inclua Artes e Esportes, por exemplo. Observe o ambiente, se ele é acolhedor, se valoriza as iniciativas dos estudantes – expondo trabalhos nas paredes, por exemplo. E veja se a escola está conectada à sua comunidade e que valores promove.
O que caracteriza uma boa escola?
É uma escola que estimula todos a fazer o seu melhor. Alunos, professores e diretores gostam de estar ali e se sentem estimulados a fazer o melhor possível. O papel principal da Educação é ajudar as pessoas a entender os seus potenciais, desenvolve-los e aproveita-los da melhor forma. E, em geral as escolas fazem o contrário.
Entrevista concedida a Anabela Paiva