Com 40 anos de experiência clínica, a paulista Ceneide de Oliveira Cerveny é uma referência em terapia de família. Além da longa prática em consultório, Ceneide é reconhecida pelo pioneirismo de suas pesquisas sobre o ciclo vital das famílias brasileiras de camadas médias e urbanas.
Em 1997, 1.105 entrevistas realizadas por estudantes de pós-graduação com famílias de 69 cidades paulistas mostraram à pesquisadora que nem todos os conceitos criados por teóricos estrangeiros sobre os diferentes momentos da vida familiar se adequavam à realidade brasileira. Os resultados foram apresentados no livro Família e ciclo vital: nossa realidade em pesquisa (Casa do Psicólogo, 1998), citado em inúmeras teses e dissertações posteriores sobre a família brasileira.
Cinco anos depois, entrevistas e grupos focais foram a base para a obra Visitando a família ao longo do ciclo vital (Casa do Psicólogo, 2002). Atualmente ela acompanha a realização de uma terceira investigação sobre as mesmas questões no Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. “Estou doida para ver os resultados dessa pesquisa. Com a pandemia, mudou tudo”, conta em uma conversa online da sua casa em Santo Antônio do Pinhal, em plena Serra da Mantiqueira.
Aos 85 anos, viúva há cinco e mãe de quatro filhos, Ceneide continua a fazer atendimentos à distância. É docente no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP e coordenadora do Curso de Pós- graduação Lato Sensu de Intervenção Familiar: Psicoterapia e Orientação da Universidade de Taubaté. Nesta entrevista, ela falou com preocupação sobre a proliferação de filhos únicos: “Aquela família numerosa brasileira vai acabar”.
Como você desenvolveu a teoria do ciclo vital das famílias, que se tornou uma referência no estudo das famílias brasileiras?
Comecei a pesquisa a partir da leitura da pesquisadora e terapeuta de família americana Monica Mcgoldrick que, em seus livros, descreve a síndrome do “ninho vazio”, que ocorre quando o casal fica sozinho após a saída dos filhos de casa para cursar uma universidade ou trabalhar. Nos Estados Unidos, é comum que os filhos se mudem para outras cidades e só retornem em ocasiões especiais, como o Dia de Ação de Graças. Um dia em que estávamos na PUC de São Paulo estudando este tema alguém questionou: “Será que o “ninho vazio” também acontece nas famílias brasileiras? Achei a pergunta muito pertinente e, como no terceiro andar funcionavam cursos para a terceira idade, sugeri: “Vamos lá perguntar”. Ouvimos dezenas de frequentadores dos cursos e descobrimos que não sofremos de ninho vazio. Os relatos dos entrevistados revelavam o contrário: os filhos iam à casa deles todo domingo, tinha de ter macarronada, os avós precisavam buscar os netos na escola. Ou seja, viviam em um ninho-colmeia. Foi a partir dessa descoberta que comecei a minha pesquisa mais abrangente sobre o ciclo vital das famílias. Tenho muito orgulho de ter criado a primeira teoria – e acho que a única também – sobre o ciclo vital da família brasileira.
Quais são os principais elementos dessa teoria?
Classifico a trajetória do Ciclo Vital na família brasileira em quatro fases: Aquisição, Adolescente, Madura e Última. A Fase de Aquisição começa quando duas pessoas se unem para viver juntas e vai até a entrada dos filhos na adolescência. É a fase em que se busca adquirir bens, como um apartamento, ou serviços, como seguro de saúde. Mas não só isso: é uma fase de expansão de redes de relacionamento (como os pais da escola dos filhos) e de escolha de modelos e valores. Que modelos vamos seguir na educação? Tudo isso faz parte desta fase. Hoje em dia, é nessa fase que acontecem a maioria dos divórcios. Um dos motivos é que, como muitos casamentos não são formalizados, é mais fácil a separação.
Por que você chama a etapa seguinte de Família Adolescente?
Chamei assim porque na minha clínica percebi que, pelo menos no universo da classe média, a família toda adolesce. A hierarquia entre pais e filhos, por exemplo, é muito mais tênue. Quando eu atendo uma família na Fase Adolescente, muitas vezes na primeira sessão faço uma pergunta provocativa: “Quem manda nesta família?”. Eles ficam espantados. E já aconteceu de um adolescente levantar a mão e dizer: “Sou eu”. Eu perguntei a outra pessoa da família – o irmão, por exemplo – se ele concordava. E o irmão respondeu: “Olha, nunca pensei nisso, mas agora que ele falou… A gente só vai no restaurante que ele gosta… E toda vez que a gente vai tirar férias também ele tem a preferência do lugar”. Existia mesmo um filiarcado daquele personagem. Outro fenômeno é a tentativa dos pais, diante do crescimento dos filhos, de reviver a sua adolescência: o pai faz academia e frequenta shows com os filhos, a mãe troca roupas com a filha…tudo isso é muito estimulado pela nossa cultura, onde há uma grande cobrança pela juventude.
E qual costuma ser a atitude dos filhos diante desse adolescimento dos pais?
Uma vez recebi uma família em que havia duas adolescentes. Eu perguntei a elas: “O que vocês vieram buscar?”. E uma das adolescentes respondeu: “Eu quero meu pai de volta. Eu quero aquele pai antigo, não quero esse pai que fica conversando com as minhas amigas, dando carona para elas de moto, sabe?”. Esses adolescentes não estão pedindo um pai repressor. O que eles querem é que cada um fique no seu lugar: os pais na turma deles e os filhos na sua.
O que assinala a entrada da família na Fase Madura?
A entrada dos filhos na idade adulta e, muitas vezes, a sua saída de casa, para estudar ou trabalhar. Os filhos se casam, chegam os netos… É uma fase longa e muito difícil, pois é quando ocorrem os maiores conflitos, muitos deles a partir da entrada dos agregados. Com o casamento dos filhos, entram na família pessoas com valores e culturas diferentes. Se os casamentos são interculturais, com pessoas estrangeiras, a chance de conflitos é ainda maior. Os netos também costumam ser motivo de atrito. Vejo muitas queixas de avós que cuidam dos netos, mas não podem educá-los. Outras vezes, especialmente em casos de casais divorciados, as crianças são usadas como moeda de troca: se você fizer tal coisa, pode ver seu neto. E tem o fenômeno que chamo de “abertura do baú”. O casal abre aquele baú de mágoas de 25, 30 anos. Vem as cobranças, as dívidas: “Eu não fiz tal coisa porque você não deixou”. Além disso, o casal perde seus pais e se aposenta, perdendo a identidade profissional. Tudo isso faz da Fase Madura um período propício às separações.
E na Fase Última?
A grande dificuldade dessa fase é manter a independência. A velhice é muito cara. Se a pessoa tem a sua reserva financeira e saúde, a velhice é maravilhosa. Ela também é muito boa se, ao olhar pelo espelho retrovisor, a pessoa fica contente com o que vê. Quando olhamos para o passado e vemos pendências, brigas, coisas mal resolvidas, é muito difícil envelhecer. Eu costumo dizer às pessoas que tentem resolver os conflitos quando as pessoas ainda estão vivas. Resolvam os nós, porque o morto é muito mais exigente do que o vivo. Não se consegue pagar as dívidas com os mortos. Tem gente que usa suas crenças, seus mitos para resolver: vai todo mês ao cemitério, acende velas. Mas o melhor é resolver em vida.
Ao longo de décadas como terapeuta familiar, que mudanças você percebeu no modo como as famílias vivem essas fases?
Hoje temos uma adolescência expandida, evidenciada pelas gerações Canguru e Bumerangue. O jovem canguru é aquele que não consegue sair de casa, mesmo tendo condições para isso. Ele não quer sair do conforto, da bolsa materna. E, de acordo com os resultados das pesquisas que orientei sobre o assunto, as mães também querem manter os filhos em casa, e os pais dizem que gostariam que as filhas só saíssem de casa para casar. Já os bumerangues são aqueles que vão e voltam. Saem de casa, vão morar com alguém, até se mudam do Brasil, mas depois não dá certo e voltam.
Sua análise do ciclo vital parece se destinar às famílias em que os casais permanecem juntos por décadas. Será que a ideia de um ciclo vital familiar permanece no contexto atual, em que os divórcios são muito comuns?
O ciclo vital de uma família vai da união de duas pessoas até as suas mortes. Esse ciclo vital pode ter sobreposições. Se o casal se divorcia e um deles se casa novamente, ele vai iniciar uma nova Fase de Aquisição com o novo parceiro. Se um homem na idade madura se separa e casa com uma mulher jovem ele vai passar de novo pela Fase de Aquisição e, se tiver filhos, pela Fase Adolescente. Mas ao mesmo tempo continua a ser pai dos filhos e netos relacionados ao casamento anterior. A família não acaba com o divórcio.
A pesquisa sobre o Ciclo Vital já teve duas edições, em 1997 e em 2002. Uma terceira está ocorrendo agora. A família mudou na essência?
Na primeira pesquisa, em 1997, a segurança era a tônica das famílias: a aquisição de imóveis, patrimônio era uma grande preocupação. Nos anos 2.000 a qualidade de vida já começou a aparecer como um valor importante; hoje, ela é o maior objetivo. As pessoas querem viver em lugares bons, calmos, ter uma vida tranquila, sem tanto estresse. A maioria dos jovens não quer tanto ganhar dinheiro, e sim viver a vida. Isso também está muito relacionado à nossa economia, pois ficou muito difícil a aquisição de bens nessa fase.
Essa busca de lugares onde a vida é mais tranquila aumentou na pandemia, não?
Olha, eu moro na Serra da Mantiqueira, numa cidadezinha chamada Santo Antônio do Pinhal. Aqui já não tem mais nada para comprar ou alugar e estão fazendo condomínios porque muitas pessoas estão vindo para cá morar. É que esta ainda é uma cidade do interior: quando cai um muro numa casa, todo mundo se junta para arrumar; quando quebra o macaco do único borracheiro da cidade, as pessoas fazem vaquinha para comprar um novo. É uma realidade muito diferente da cidade de São Paulo. E as pessoas estão procurando isso.
Que outras novidades a pesquisa trouxe?
Tem coisas muito interessantes. Por exemplo: sabe qual é o maior ritual do brasileiro?
Celebrar o Natal?
É trocar presentes. O povo brasileiro adora presentear e ser presenteado. Se você é convidado para uma visita, sempre leva um presentinho ou uma comidinha. Nunca vai de mãos vazias. Você não vê isso em lugar nenhum do mundo. Outro ponto interessante da pesquisa é que a maior preocupação dos pais em todo o Brasil é a educação e o futuro dos filhos. A partir do nascimento dos filhos, o principal objetivo da família passa a ser assegurar que eles tenham uma boa educação e um futuro seguro.
Nos últimos tempos temos assistido à popularização de novos modelos familiares. Além do casal heterossexual, temos mais famílias formadas por casais do mesmo sexo biológico, casais trans e até o poliamor. Isso sem falar nas famílias monoparentais, que são muitas. Será que isso muda o ciclo de vida familiar? Ou a família continua a mesma?
A família não é mais a mesma, mas o valor da família é o mesmo. Na nossa sociedade, principalmente no Brasil, a família é importante, é um valor. A família sempre vai existir. Mais do que as diferentes configurações familiares, acho mais importante pensar que daqui a 20 anos nós não teremos tios e primos. Não vamos ter família extensa.
Por quê?
Porque as famílias estão optando por ter apenas um filho. E este, portanto, não vai ter irmãos nem primos. Seguindo a mesma tendência, o filho deste filho único não vai ter irmãos, primos e nem tios. As famílias vão encolher. Não teremos mais aquelas famílias extensas, que se reuniam no Natal e em alguma ocasião especial. Isso vai ser substituído pelas redes de relações, por uma família credenciada, que cada um vai escolher. Essa mudança já está acontecendo e me preocupa, pois as relações entre irmãos são muito importantes para a formação de uma pessoa. Com o irmão você aprende a dividir, a confiar, a fazer alianças, a disputar. E isso vai ser cada vez mais raro.
Você costuma também acompanhar famílias que fazem adoção?
Em relação à adoção tenho uma convicção: todas as pessoas têm direito a saber a sua origem. Este é um direito humano. Uma síndrome que vejo em adotados é o que chamo de Vazio da Origem. Mesmo que eles tenham amor, que tenham tudo, muitos são pessoas que não sabem de onde vieram. Quando eu trabalho com alguém que quer adotar uma criança, peço à pessoa que faça um dossiê. Quando começou a pensar em adoção? Onde procurou? Quem era a família de origem da criança? Tudo escrito. Sugiro que os pais adotivos anotem o nome dos pais biológicos. E façam um álbum para amenizar a Síndrome do Vazio da Origem. E por isso se deve evitar aquela adoção à brasileira, de pegar o filho que alguém quer dar e registrar como seu. Todo mundo tem direito de ter uma adoção legitimada, que preserve o maior número de informações.
Você continua a atender famílias. Qual é o principal motivo que leva as famílias a buscar uma terapia?
As dificuldades de comunicação. A dificuldade de um ouvir o outro. Essa é afinal a base das relações.
Você observou impactos da pandemia nos seus atendimentos?
Acho que os adolescentes e os idosos como eu perderam muito. Nessas idades, dois anos são fundamentais. Os adolescentes têm vigor, vontades, planos. Quantas festas, viagens e projetos vi serem adiados! Eles sentiram muito essa frustração. E, para os que estão na velhice, foi muito sofrido. Eu continuo trabalhando, uso a internet, posso me relacionar. Mas muitos idosos não conseguem ter acesso à tecnologia e dependem de outras pessoas. Esses ficaram isoladíssimos, na televisão.
Sabemos que a longevidade da população brasileira aumentou muito nas últimas décadas. Na época das famílias numerosas, era costumeiro que uma das filhas assumisse o cuidado dos pais. Hoje, como você disse, as famílias são menores e vai ser mais difícil encontrar esse apoio familiar. Isso vai obrigar os pais a planejar a sua fase última, não é?
Algumas famílias se propõem a fazer um revezamento dos cuidados, outras acham melhor colocar o idoso numa instituição de longa permanência. Isso, quando todo mundo concorda, é ótimo. O ideal seria que o idoso visitasse essas instituições para escolher, mas isso quase não acontece. E a mensalidade cobrada por esses locais é muito cara. Há locais que chegam a cobrar R$ 20 mil mensais. Este é um assunto urgente. Com a tendência de as famílias terem apenas um filho, o problema vai piorar muito.
Então podemos dizer que, se o grande objetivo das famílias é o futuro dos filhos, os casais precisam destinar uma parte desse investimento ao planejamento da sua velhice?
Exato. Selecionar um tipo de previdência privada, investir em um patrimônio que possa gerar renda. Isso tem de ser feito! Já andei falando com amigas de alugarmos juntas uma casa, para vivermos em um quarto cada uma, com cozinheira e até motorista. Voltaríamos a viver numa república!
Este é um bom modelo, acha viável?
Eu acho. Todos têm direito a envelhecer e morrer com dignidade. Você tem de ser dono da sua vida até o final. Quando eu era mais jovem, tinha uma frase do Afonso Arinos na minha agenda: “Se você tem bons motivos para viver, você suporta qualquer maneira de viver”. Agora, que fiquei velha, não acredito mais nisso. Eu não suportaria qualquer maneira de viver. Eu não gostaria de viver dependente, mesmo que fosse das pessoas da minha família. Não quero ser entubada, ficar presa a fios. Eu quero morrer antes de voltar a ser criança. Eu fiz umas lives no ano passado sobre isso, em que falava sobre o direito de morrer com a dignidade que sempre teve em vida. Juro que fui agredida por pessoas que não aceitavam falar sobre o assunto. Este, aliás, é um dado da pesquisa: o assunto mais evitado pela família no Brasil é a morte. Nós fingimos que ela não está ali na frente.
Como você está lidando com isso, aos 85 anos?
Quando meu marido ficou doente, a gente conversou sobre isso. Ele falou para mim: olha, eu não quero ficar em UTI, não quero ficar entubado. Quero ser cremado e que minhas cinzas sejam jogadas na represa onde eu sempre velejei. Quando ele passou mal aqui no sítio, teve uma parada bronco respiratória. Fomos para o pronto-socorro. A médica avisou: “Vamos ter de ressuscitar”. E eu falei: “Não. Não vai ressuscitar, não”. Eu fiz o combinado. E quero que meus filhos façam o combinado comigo.
Você tem vinte livros publicados até agora e uma tese que influenciou as gerações seguintes de terapeutas e pesquisadores. Dá orgulho?
Eu trabalhei no Colégio Experimental da Lapa, em São Paulo, onde havia uma diretora, Terezinha Fran, que dizia: “Olha, quem passa por aqui temque ser um fator de mudança na sociedade“. Acho que contribuí para uma maior compreensão nessa área dos estudos da família brasileira.
Entrevista concedida a Anabela Paiva