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Foto de Andréa Pachá

A Justiça não pode resolver todos os problemas

Andréa Pachá passou 15 dos seus 23 anos como juíza em varas de família, decidindo sobre guarda de filhos, ações de paternidade, casamentos e divórcios. Em mais de 20 mil audiências, a ex-produtora teatral e frequentadora de cursos de roteiro acumulou um conhecimento aprofundado sobre as relações de afeto, que transformou em dois livros de crônicas: A vida não é justa − Amores e outros conflitos reais segundo uma juíza” (Agir) e “Segredo de Justiça” (Harper Collins).  Escritos numa prosa elegante e sensível, isenta de juridiquês, as obras inspiraram um quadro no programa “Fantástico” e lhe valeram o convite para atuar como comentarista na rádio CBN.  Nesta entrevista, realizada no Fórum do Rio de Janeiro, a juíza, hoje titular da 4º Vara de Órfãos e Sucessões, comenta os desafios representados pelos novos modelos de famílias, critica a excessiva judicialização dos conflitos e revela que sua experiência como juíza a ensinou a lidar com seu próprio divórcio.


As leis brasileiras referentes às famílias atendem ao Brasil de hoje?  

Poucas áreas do Direito avançaram tanto quanto o Direito das famílias. Até 88, marco da Constituição, filhos adotados eram  tratados de maneira distinta nas sucessões e um homem casado não podia reconhecer o filho nascido fora do casamento. Até 1977 não havia  divórcio. Hoje, temos a guarda compartilhada e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Se a gente enfrenta algum problema para regular as relações familiares, não é de natureza legislativa.

E também tivemos o reconhecimento de união homoafetiva.

Essa é uma construção da justiça, não existe lei. O Supremo Tribunal Federal (STF), em um determinado processo, reconheceu uma união estável como unidade familiar. Agora, todos os juízes devem reconhecer os pedidos de uniões estáveis homoafetivas. A jurisprudência criou a afirmação do direito. Existe um projeto de lei, mas o Legislativo não coloca em pauta.

Como se constrói uma nova lei?

Normalmente, os avanços legislativos vem a reboque das demandas de grupos organizados. Eles encaminham a demanda para o deputado, o deputado apresenta um projeto de lei e o projeto vai ser discutido no Congresso. O risco é a paralisia da sociedade. Quando ela não se mobiliza, o cara com um mandato se acha legitimado a propor qualquer lei. Isso é um perigo. Por isso é tão importante a qualificação do Congresso.

Então, algumas vezes, o papel do juiz de família exige atuar nas brechas da lei?

A legislação de família permite decidir no melhor interesse da criança. Antes de haver uma lei sobre guarda compartilhada, eu já julgava processos compartilhando a guarda, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente. O melhor interesse da criança é ser cuidada pelo pai e pela mãe; então, eu compartilhava a guarda. Com a velocidade em que as mudanças tem acontecido, a lei nunca vai conseguir acompanhar. Então, o processo de família acaba sendo um processo que tem mesmo um grau de subjetividade.

Hoje, além das famílias homossexuais, temos uniões de mais de um casal.

Alguns cartórios do Rio e de São Paulo fazem uma escritura de reconhecimento de união poliafetiva. Pessoas vão ao cartório e declaram que vivem juntas como uma unidade familiar. Eu não vi ainda chegar nenhuma demanda de reconhecimento de família poliafetiva na justiça. Mas é uma realidade, e uma hora a gente vai ter de decidir: é família ou não é família? Quanto ao desejo de cada um, cada um vive da forma que quer, isso é um problema moral, não diz respeito à Justiça. Você vai encontrar famílias poliafetivas mais estruturadas do que famílias com modelo tradicional. Mas um novo modelo social tem impactos e a sociedade paga o preço. Quem vai pagar a Previdência de dois dependentes, se a Previdência já não está dando para um? Como vai ficar uma relação de filho numa família poliafetiva? Ele vai ser registrada pelos três? Desses três, dois tem direito de ter um filho e registrar sem a participação do outro? Você já tem, hoje, a Justiça reconhecendo a multiparentalidade.

Como foi essa mudança?

Antes, as pessoas não registravam os filhos de famílias homoafetivas, pois diziam que na certidão deveria constar pai e mãe. Isso se resolveu rapidamente: filho de fulano e sicrano, ponto. Agora, outro caso: a mãe morreu no parto; a criança ficou com o pai; ele começou a se relacionar com outra pessoa e se casou. Essa pessoa se tornou a referência materna dessa criança. Depois de anos, ela quer o nome dela na certidão de nascimento da criança. E aí, como você vai tirar o nome da mulher que foi mãe? Então, qual foi a construção que se fez? Incluir o nome da outra mãe, sem excluir o da mãe biológica – um registro de nascimento com o nome das duas mães e do pai. Essa foi a origem dessa relação multiparental. E agora você tem possibilidades infinitas de inseminação. Como vai ser se a criança nascida por inseminação quiser saber quem é o pai? São questões muito difíceis e profundas. Direito é diferente de desejo. Diz respeito à construção da civilização. Trabalhar com Direito significa trabalhar com limites.

Você costuma dizer que não existe o direito à felicidade.

É, porque as pessoas têm uma incapacidade de lidar com contrariedade. É como se o Direito e a Justiça fossem capazes de responder a esse desamparo. Tem pedido de fixação de multa para a mãe que impede o pai de visitar o filho, tem filho pedindo indenização porque o pai não foi presente, por falta de afeto. Alguns juízes entendem que, se a sociedade é patrimonialista, porque não garantir os direitos dessa forma? É uma maneira de enxergar.

O que define hoje uma família?

Não tem um conceito. O que eu vejo como família são núcleos de pessoas que se unem pelo afeto e com um projeto de vida em comum. Famílias, hoje, se definem muito mais pela responsabilidade interpessoal, pelo cuidado que um tem com o outro. A responsabilidade é o que dá a dimensão do núcleo familiar.

Você hoje atua em uma vara de sucessão. Tem observado novos dilemas?

Sim, como os limites de curatela para pessoas com doenças psiquiátrica. Antigamente, o doente psiquiátrico era interditado, considerado incapaz e não podia praticar mais nenhum ato da vida civil. Hoje tem o recentíssimo Estatuto da Pessoa com Deficiência. A pessoa que tem esquizofrenia precisa de uma curatela? Se ela se trata, se tem medicação, não precisa. Ela é capaz de fazer tudo sozinha. Borderline, bipolar – qual o limite da intervenção do Estado na vida dessas pessoas? Outra questão é a tendência das famílias de subtrair do idoso a autonomia. Uma coisa é proteger, outra coisa é dizer para uma pessoa idosa que ela não tem direito de errar. Todo mundo em estado agudo de paixão é absolutamente irracional, mas se você se apaixonar com 70 anos vão dizer que está senil e precisa da curatela.

Às vezes até por uma questão patrimonial.

Eu escrevi uma história curtinha outro dia: a família pediu a curatela de um senhor de 84 anos, preocupadíssima porque ele estava gastando muito dinheiro, fazendo saques em cima de saques. No dia da audiência, ele estava absolutamente lúcido, e falou: “Olha, eu estou namorando uma moça. Ela é novinha e é claro que não me ama, não é, doutora? Eu não sou burro. Sei que ela quer o meu dinheiro. E eu quero ela. A senhora não acha que eu estou certo?”.  Achei graça, a família achou graça. A família não estava realmente preocupada com o dinheiro. Estava preocupada de que ele estivesse sendo manipulado ou chantageado.

A audiência também é uma momento de negociação. O juiz de família precisa assumir o papel de terapeuta?

Acho que não deve. Eu tenho a possibilidade de conduzir a audiência e, eventualmente, fazer com que um escute o outro. Mas juiz não pode fazer papel de terapeuta. Mesmo porque, se eles não chegarem a um acordo, eu terei de decidir. E não dá para ter a fantasia que a Justiça vai resolver todos os problemas da humanidade. Pais procuram a Justiça para garantir que o filho faça segunda chamada de uma prova. Ou para decidir qual será a escola do filho.  O Estado não tem de interferir nisso. Esse é um dos atributos dessa sociedade infantilizada: não querer se responsabilizar pelas suas escolhas.

Seus livros abordam muitos processos de divórcio. É descrente do casamento?

Pelo contrário, eu sou fã do casamento. Eu acho que a gente precisa ajustar as nossas expectativas. Essa fantasia de romantizar uma relação leva a frustrações desnecessárias. Encontrar uma pessoa para construir um projeto de família, um projeto patrimonial, caminhar juntos, envelhecer juntos… São desejos superimportantes. O que frustra é a idealização. O estado inicial da paixão é uma delícia, mas não se perpetua. O cotidiano, a realidade  se interpõem. Essa nova geração, na hora em que vira adulto e casa, na primeira contrariedade diz:  “Quero voltar para minha casa, não quero mais ficar aqui”. E o divórcio está muito mais fácil. No começo, em 1977, você só podia se divorciar uma vez. Depois ampliou: podia divorciar quantas vezes quisesse. Mas era preciso estar há dois anos separado. Aí veio a Constituição e disse que o casamento termina pelo divórcio e que este pode ser imediato. É o divórcio fast food. Você permite que o cara brigue de manhã e entre com o divórcio à tarde. Todo aquele conflito quente vem para a Justiça.

As experiências em audiências impactaram sua vida? Como chegava em casa depois de ouvir tantas histórias dramáticas?

Durante a minha vida em varas de família sempre tive um casamento e uma família muito funcionais. A minha preocupação era não me fazer de modelo. Quando eu passei pelo meu processo de separação, essa experiência foi importante para que eu experimentasse o luto com a racionalidade possível.  Vou te contar uma coisa: é muito mais difícil do que eu imaginava assistindo.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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