Ricardo Taboaço tinha 25 anos, um mestrado pelo celebrado Instituto Militar de Engenharia (IME), um emprego seguro na Comissão Nacional de Engenharia Nuclear e nenhum conhecimento sobre finanças, quando surgiu a oportunidade de integrar um programa para trainees do Citibank N.A., ganhando metade do seu salário na Comissão. Lá foi ele.
Seis anos mais tarde, já vice-presidente da área de corporate do banco, mas sem qualquer experiência com investimentos, recebeu o convite para integrar a equipe da holding responsável pela gestão de uma das maiores fortunas familiares brasileiras. Contas feitas, novamente topou o desafio.
Ali passaria 15 anos, até que, em 2003, mais uma vez deixaria uma posição segura e, agora, extremamente confortável, para desbravar um novo mercado, fundar um dos primeiros multi family offices brasileiros e criar um método próprio para a gestão de patrimônios familiares.
Vinte anos mais tarde, chego eu para entrevistá-lo no final de uma manhã de trabalho. Minha pauta é a Alocc Gestão Patrimonial, sua origem, seu propósito e seus diferenciais. Taboaço adentra a sala de reuniões com a disposição e o sorriso de quem acabou de sair do banho depois de um mergulho na praia, embora já esteja no escritório há várias horas. Durante a entrevista, qualquer pergunta, a mais tola, é recebida como uma oportunidade de explicar. Não se esquiva, fala rápido e com entusiasmo, corrige-se quando é preciso e me encara, ao final de cada resposta, querendo saber se entendi e pronto para ser arguido.
Em menos de quinze minutos, fica claríssimo que não vou receber as respostas convencionais para que estava preparada. Desisto das anotações e decido confiar no gravador. Compreender é mais importante do que apenas registrar.
Em 2003, quando vocês entraram nesse mercado, só havia um ou dois recentes e pequenos multi family offices no Brasil, enquanto esse tipo de serviço já proliferava nos Estados Unidos e na Europa há duas décadas. Por que essa defasagem tão grande?
Qualquer empresa depende de um terroir apropriado para o seu negócio. Ninguém abre uma fábrica de sucos no Saara, né?
Então, vamos ver: os multi family offices surgiram e se firmaram nos Estados Unidos durante os anos 1980, porque naquele momento se reuniram ali uma série de condições, propiciadas sobretudo pelo desenvolvimento tecnológico: globalização dos mercados, multiplicação de instrumentos de investimento, ferramentas para a consolidação de informações e formação de novos patrimônios, gerados, principalmente, por negócios ligados a essas mesmas tecnologias.
Enquanto isso, a gente, no Brasil, vivia em uma economia fechada e altamente estatizada, com pouquíssimo acesso às tecnologias mais modernas, volumes mínimos de negociação em bolsas e em um ambiente de inflação galopante que persistiu até 1995, o que dificultava enormemente a acumulação de capital líquido e praticamente inviabilizava planejamentos de longo prazo. Em resumo, éramos uma espécie de Saara dos multi family offices.
Só a partir dos anos 2000, após a abertura econômica, a estabilização da moeda, a redução do nível de estatização e a dinamização da economia, começamos a ter ambiente para esse tipo de negócio.
Então, quando vocês se estabeleceram, já dava para prever o desenvolvimento desse mercado, né?
Mais ou menos. É claro que nós vislumbrávamos que, se tudo continuasse nos mesmos trilhos, a tendência seria que o segmento crescesse junto com o país, mas havia esse “se” no caminho, e era um SE em negrito e maiúsculas.
Esse novo cenário ainda era muito recente, e havia o temor de uma reversão em função do governo que estava entrando. As previsões da maioria dos analistas não eram nada animadoras. O Lula assumiu em janeiro de 2003, e nós começamos a operar em maio após vários meses de planejamento. Naquele momento, ninguém tinha ainda uma ideia clara do rumo que as coisas iriam tomar. Se nós tivéssemos nos guiado por previsões, teríamos, no mínimo, aguardado mais tempo para abrir as portas.
Felizmente, a economia continuou a ser conduzida mais ou menos dentro das mesmas bases. Coincidentemente, o mundo entrou num ciclo de crescimento acelerado, e os investimentos estrangeiros, já intensificados desde o controle da inflação e das privatizações, dinamizaram o ambiente de negócios. Vários setores passaram por consolidações, com fusões e aquisições, e o resultado foi um considerável aumento do número de famílias com grande volume de recursos líquidos e precisando reestruturar sua vida patrimonial. Agora, nós não tínhamos como saber que seria assim. Então, não dá para dizer que essa perspectiva tenha sido determinante para nossa escolha.
O que foi então?
No fundo, foi tudo muito mais pessoal; apostamos no que queríamos fazer, fomos otimistas e demos sorte.
Eu vinha da Icatu, onde tive uma vivência absolutamente extraordinária durante quase 15 anos, convivendo com estrategistas e operadores fantásticos e com dois consultores estupendos; primeiro, Mário Henrique Simonsen e, mais tarde, Dionísio Dias Carneiro. Minha posição lá era bastante confortável; gozava da confiança dos proprietários, que sempre admirei, era sócio do banco, que ajudei a estruturar, e muito bem remunerado como executivo.
A única razão para abrir mão de tudo isso era perceber que, dali em diante, minhas melhores habilidades tendiam a ser subaproveitadas. Os parâmetros da gestão já estavam estabelecidos, o banco, estruturado, e as posições de maior risco, zeradas em função do momento político. Eu não vislumbrava mais grandes oportunidades de fazer diferença, aprender e propor coisas novas.
Aí, em 2002, tirei um ano sabático, já com a impressão de que não ia querer voltar. Foi um tempo para pensar na vida, refrescar a cabeça e estudar possibilidades. Eu tinha só 45 anos. Mesmo tendo formado um patrimônio que permitiria que eu me aposentasse, parar de trabalhar não era, decididamente, uma opção para mim. Também não era o caso de mudar de instituição. Se fosse para continuar naquela vida de banco, eu ficaria onde estava, mas não me motivava mais.
Comecei a buscar um novo rumo. Eu poderia me tornar um industrial ou um comerciante…, e apareceram possibilidades que realmente me atraíam e que cheguei a analisar, mas, no final das contas, eu não conseguia ver sentido em deixar para trás, improdutivos, os conhecimentos raros que eu havia tido a oportunidade de construir em todos aqueles anos de trabalho, especialmente na Icatu. Eu tinha compreendido a lógica particular de gerir um patrimônio segundo os interesses da família proprietária, e não segundo a concorrência entre os que disputam seus recursos para investimentos. Se hoje ainda não é fácil encontrar profissionais que compreendam essa diferença e dominem as questões técnicas envolvidas, imagine há 20 anos.
Bem, aí, por uma dessas felizes coincidências da vida, enquanto eu estava nessas cogitações a Verônica [Nieckele], que eu havia conhecido muitos anos antes, na Icatu, comprou uma casa ao lado da minha em Angra, e começamos a conversar.
Ela vinha de uma experiência traumatizante, mesmo tendo se saído com surpreendente sucesso. Era diretora comercial da gestora de investimentos de um grande banco estrangeiro, quando, do dia para a noite, um dos fundos mais populares da casa quebrou por conta de operações que extrapolavam a política de investimentos definida para o fundo e não tinham sido comunicadas nem aos clientes nem a ela própria. Ela assumiu a defesa dos clientes e foi bastante bem sucedida, mas a um custo pessoal que não estava mais disposta a pagar. Não havia a menor hipótese de ela voltar a correr o risco de uma situação que a colocasse entre a instituição que representava e os seus clientes, e o lado em que ela queria estar era o dos clientes.
Foi uma coincidência quase inacreditável: por caminhos diferentes, desenvolvendo habilidades complementares, nós dois tínhamos chegado exatamente ao mesmo ponto.
Aí, a decisão de fundar um multi family office foi imediata?
Desculpe frustrar você de novo, mas não… [Risos.]
A gente estava no auge do processo de consolidação do setor bancário, e muitos executivos egressos de bancos estavam abrindo gestoras independentes e tendo sucesso. Nós tínhamos as credenciais para entrar nesse negócio e boas condições para nos sair bem.
Era sedutor, uma tentação realmente, e a gente se debateu com ela, porque era o caminho mais fácil, com menor risco: um mercado em ascensão, com a comprovada existência de consumidores, já razoavelmente estabelecido, regulamentado e compreendido pelo seu público-alvo, com modelos de negócio definidos e testados e profissionais especializados disponíveis. Nós poderíamos ganhar menos ou mais, mas era muito improvável que perdêssemos dinheiro com uma gestora de recursos.
Já a alternativa do multi family office comportava as dificuldades e os riscos característicos de uma proposta disruptiva; ou seja, os riscos de um negócio que propõe uma solução para um problema não reconhecido até então. Seria preciso criar um modelo de negócio próprio, enfrentar toda a confusão de enquadrar uma atividade imprevista nas normas regulatórias, construir uma estrutura original, partindo quase do zero, formar pessoas para atuar dentro dela e, tão ou mais importante do que tudo, conquistar um espaço na cabeça dos clientes potenciais, que não faziam a mínima ideia da existência de um serviço como o nosso e do que ele poderia oferecer. Depois de 20 anos, nós ainda recebemos clientes que confundem a nossa proposta com a de uma gestora, e temos que explicar a imensa diferença entre as duas coisas.
E por que vocês não escolheram a gestora?
A questão, para nós, é que a nossa hipotética gestora seria apenas mais uma; quer dizer, poderia até ter resultados melhores do que outras, mas nós não tínhamos nenhuma inovação essencial para agregar à oferta das gestoras de recursos, e, enquanto isso, os nossos conhecimentos sobre planejamento e gestão de patrimônios familiares, esses, sim, inovadores, iam ficar desperdiçados.
É claro que, se a gente estivesse buscando o menor risco, teria optado pela gestora, mas o nosso objetivo não era de sobrevivência imediata, e, sim, de realização pessoal.
Você está dizendo que lucro não era prioridade?
Pelo amor de Deus, eu não estou cometendo a hipocrisia de sugerir que nós não nos importamos com lucro. É claro que nós queríamos e queremos ter um negócio lucrativo. Nenhum negócio prospera sem lucro. Nesse sentido, o lucro é sempre prioritário, para qualquer negócio. Aliás, um dos nossos desafios, talvez o maior, era justamente fazer com que o serviço de excelência que nós oferecemos, 100% focado no cliente e com zero conflito de interesses, fosse também economicamente viável e lucrativo, e não, um empreendimento bem-intencionado, mas destinado a morrer na praia.
Agora, como nós já tínhamos um patrimônio capaz de gerar rendimentos para sustentar nossas famílias e alguma disponibilidade para correr riscos, o lucro por si só não era a principal motivação, e nós tínhamos condições de esperar certo tempo até que o negócio começasse a dar resultado ou se mostrasse inviável. Dificilmente nós teríamos apostado no multi family office se não fosse por essa condição.
Vocês foram arrojados.
Talvez, mas eu tenho um pouco de medo dessa palavra, porque sugere uma questão de temperamento, de ego, voluntarista, qualquer coisa assim, e não foi nada disso. Aos 25 anos eu, provavelmente, era uma pessoa muito mais arrojada do que aos 45, mas não correria o risco de um negócio assim, simplesmente porque não tinha condições de correr. O que nós fizemos foi estudar o negócio, pesquisar, fazer contas, verificar até que ponto podíamos correr o risco de fracassar, estabelecer parâmetros, e, então, investimos conhecendo as necessidades do negócio e os nossos limites de investimento.
O mais curioso dessa história, e até meio mágico, milagroso, sei lá, é que, quando a gente conta, percebe que a nossa motivação existencial (ou o nosso propósito como se passou a chamar para fins de divulgação) era, justamente, construir soluções para que outras pessoas tivessem a mesma oportunidade que nós tínhamos conquistado; a oportunidade de parar, refletir, decidir e fazer do dinheiro um instrumento de realização pessoal, e não apenas uma necessidade, um fim em si mesmo. Por isso, a gente sintetiza a nossa oferta em tranquilidade e liberdade.
Puxa, parece que enveredamos por um caminho mais filosófico…., não sei se eu estava preparada para isso… [Gargalhadas bilaterais.]
Não é tão complicado. É só que, quando a gente se fecha na lógica do mercado, esquece que dinheiro é um símbolo que representa tempo de vida, trabalho, afetos, desejos, sacrificados ou realizados. A lógica do mercado é sempre comparativa e sempre relativa aos seus próprios termos; percentuais, rentabilidades e probabilidades. As perguntas do mercado são: “quem vai ganhar de quem?”, “vai subir ou vai cair?”, “quanto vai subir ou cair?”, “antes ou depois?”. Não há nada de errado nisso, esse é o papel do mercado, e é um papel importantíssimo, mas, para as pessoas de carne e osso, o que importa de verdade é saber como vão viver. As suas perguntas são absolutas: “vai ter comida, casa, escola, plano de saúde amanhã?”, “até quando?”, “quanto eu preciso ganhar?”, “quanto posso gastar?”, “quando posso parar de acumular?”.
A diferença entre bancos, corretoras e gestores e nós, family offices, é que eles oferecem aos investidores respostas às perguntas sobre o mercado, enquanto nós construímos respostas para as perguntas sobre a vida das famílias. Não temos a mínima pretensão de substituir essas instituições nas suas atividades-fim nem queremos dar respostas sobre o mercado melhores do que as delas – ao contrário, o nosso negócio até depende de que elas existam, e quanto melhores elas forem, melhor para nós e para os nossos clientes.
Nós apenas fazemos aquilo que essas instituições não podem fazer; tirar o olho do mercado e focar na situação de cada cliente. Elas precisam construir visões sobre o comportamento do mercado e reconstruí-las constantemente, acompanhando o movimento diário dos ativos e de tudo o que tem impacto sobre eles. Já para nós, o indispensável é ter uma visão global e um entendimento profundo das condições de cada cliente e acompanhar sua situação ao longo do tempo. Só assim a gente pode propor soluções para a organização do patrimônio e compor uma carteira de investimentos que responda a suas necessidades de liquidez no curto, no médio e no longo prazos, reunindo diferentes visões de diferentes gestores especializados nas várias classes de ativos.
Na prática, que diferença isso faz na vida das famílias?
Muita. Sabe quando há um barulho de fundo, contínuo, atordoando? Ocasionalmente, todo mundo começa a esbravejar, o que era para ser uma conversa passa a ser uma briga, e você só se dá conta quando, finalmente, o barulho cessa. Aí, dá aquele alívio, você volta a raciocinar, as pessoas abaixam o tom, vão se entendendo e aquela dorzinha de cabeça exasperante passa, miraculosamente. É mais ou menos isso.
Você pode ser o profissional mais brilhante do mundo em outra área, genial mesmo, mas, se não tiver propensão, conhecimento e método ou apenas lhe faltar tempo para examinar sua vida financeira, organizar seu patrimônio e analisar investimentos, você vai conviver com a insegurança, vai tomar decisões sob pressão, a esmo e equivocadas, e não só sobre o seu patrimônio, mas também sobre a sua vida profissional e pessoal. Alguns decidem investir mais do que poderiam em um negócio. Outros abrem mão da sua vocação mais proeminente, dos seus talentos mais extraordinários, porque estão preocupados com o fim do mês, quando poderiam viver por anos com o rendimento do seu patrimônio. Alguns transmitem à família a sensação de uma riqueza inextinguível, de que dinheiro não é problema, o que nunca é verdade. Outros limitam o potencial dos filhos ou abrem mão de valores pessoais por um fantasioso pânico da miséria.
Quando você tem um planejamento bem feito, seu patrimônio organizado e uma estratégia de investimentos que faz sentido para a sua vida, você distingue entre o que é subjetivo e o que é objetivo, e pode tratar do que é objetivo com objetividade. Ganha segurança para tomar decisões consciente das consequências. Aquela persistente sensação de sobrecarga e a desconfiança de que está dando bobeira vão desaparecendo, e o espaço para tratar das questões subjetivas, pensar sobre o que realiza você como pessoa, aparece.
Olha, eu realmente acredito nisso, porque tenho visto esse processo melhorar a vida das pessoas e harmonizar famílias, permitir que sigam suas vocações e se concentrem naquilo que mais lhes importa, e esse é o nosso propósito.