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Foto de Alexandre Kalache

Estamos criando a gerontolescência

Formado em Medicina, o carioca Alexandre Kalache viu longe ao apostar, ainda nos anos 1970, em um Brasil de população majoritariamente jovem, numa carreira dedicada ao envelhecimento. Doutor em Saúde Pública pela Universidade de Oxford, Kalache foi diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) por 14 anos. Em 2012, criou, no Rio de Janeiro, um “Centro Internacional da Longevidade”. Tornou-se, em seguida, presidente da aliança global destes centros. Hoje, como consultor internacional sobre o tema do envelhecimento, o septuagenário Kalache personifica um perfil cada vez mais comum de idoso: ativo, independente e produtivo. É um grupo que ele chama de gerontolescentes: entre 55 anos e 80 anos, eles já deixaram a juventude, mas seguem cheios de projetos e determinados a aproveitar a vida e a contribuir para a sociedade.

Desde que o senhor nasceu, há 72 anos, a expectativa de vida no Brasil passou de 43 anos para mais de 76 anos. A que atribui esse salto?

Em grande parte, é um sucesso da saúde pública. Nós hoje temos uma mortalidade infantil muito mais baixa do que era há 30 anos. O primeiro salto para o aumento da expectativa de vida é o controle da morte prematura, sobretudo pelas doenças infecciosas e parasitárias que incidem na infância. Hoje temos vacinas e antibióticos, ferramentas muito potentes contra as infecções. E, mesmo em um país caótico como o nosso, as condições sanitárias hoje são melhores do que eram há 50 anos atrás. Outro fator importante é a nutrição. Quando eu era estudante de Medicina, vi muita criança morrendo de fome – literalmente. Hoje é muito menos comum. Infelizmente, com o nosso retrocesso econômico, está voltando o espectro da fome.

A redução da natalidade também contribuiu para o envelhecimento rápido da população? Essa mudança dramática é preocupante?

Ela preocupa, mas é parte da história do país. Nenhum governo tem tanto domínio sobre a família. Só houve um país que conseguiu isso: a China, por ser um país que tem um regime muito autoritário. Através de manipulações e imposições, a China conseguiu acelerar o seu processo de envelhecimento. No Brasil aconteceu a mesma coisa, mas sem nenhuma intervenção central. Em 1975, o número médio de filhos de uma mulher chegava a mais de 5,5. Já na virada do século 21, a média de filhos por mulher passou a ser menos de 2 – insuficiente para a reposição populacional. E são as mulheres que decidem quantos filhos elas vão ter. A partir dos anos 60, e, sobretudo, dos anos 70, a pílula permitiu controlar a natalidade a um preço bastante baixo. O nosso grande desafio é que, enquanto os países mais desenvolvidos primeiro enriqueceram para depois envelhecer, nós envelhecemos em pobreza. E seremos um dos primeiros países em desenvolvimento a ver sua população encolher ao invés de crescer. Neste aspecto, seremos pioneiros – não poderemos olhar para outros para ver o que fazer, o que dá certo e o que não dá.

Qual é o impacto desse envelhecimento sobre as famílias brasileiras?

A família brasileira está em crise em relação a esse processo do envelhecimento. Hoje, cerca de 13,5% da população tem mais de 60 anos. Daqui a 30 anos, serão 30%. As famílias não estão dando conta, estão empobrecidas. Cuidar de uma pessoa idosa dependente, com problemas crônicos, em um contexto de saúde pública muito ruim ou inexistente… Você não tem acesso adequado a um centro de saúde, que dirá uma cuidadora que possa vir à sua casa dar um banho na cama ou trocar as fraldas. E as famílias estão muito individualistas. Ninguém tem tempo. Sobretudo nas grandes cidades, é um corre-corre danado. Ainda mais em um país de tamanho continental. Às vezes, o indivíduo até gostaria de dar mais atenção aos seus familiares, mas as famílias estão fragmentadas. Um membro foi para Brasília, o outro ficou no Nordeste, um terceiro está vivendo em Roraima, e, se calhar, o quarto foi para Miami.

Muitos idosos precisam ou querem morar sozinhos. Existem soluções interessantes para que esses idosos possam fazer essa opção ou viver essa realidade com menos dificuldade?

Não temos, como em países de tradição anglo-saxônica, instituições não-governamentais que prestem serviços, ofereçam refeições e cuidado e mantenham residências para pessoas que não conseguem mais morar sozinhas. No Brasil, a única organização não-governamental que tem um certo papel no cuidado de idosos é a Igreja, mas a Pastoral do Idoso tem apenas oito ou dez anos. As igrejas evangélicas também estão começando a fazer alguma coisa em relação ao cuidado das pessoas mais velhas. Além disso, falta em nosso país uma cultura filantrópica, como há em países mais ricos de tradição anglo-saxônica ou de influência judaica mais forte. O Brasil, nesse sentido, é muito menos solidário.

Você criou um termo chamado gerontolescência. O que isso quer dizer?

Eu faço parte dos baby boomers, que é a geração nascida entre 1945 e 1965. Nessa época nasceram muitas crianças, com um nível de saúde e de educação formal muito maior do que o das gerações anteriores. Com mais saúde e mais conhecimento, nós tivemos grande influência sobre a sociedade. E tiramos proveito do período da adolescência. Até a Segunda Guerra Mundial, as crianças, mesmo nos países mais ricos, tinham de trabalhar para comer. Aos 12, 14 anos, precisavam pegar no batente. E aí, de súbito, viemos nós, muito numerosos, com mais acesso à saúde, à educação e mais recursos, com dinheiro no bolso. Passamos a ter o luxo de, por quatro, cinco anos, experimentar, virar a mesa, nos rebelarmos. Agora, que estamos envelhecendo, não o vamos fazer como os nossos pais, que dirá nossos avós. Estamos criando uma nova transição. É uma população que ao envelhecer continua a querer viver mais e melhor, tem orgulho da sua idade e quer ser produtiva.

Oficialmente, caracterizamos o idoso como aquele acima de 60 anos. Nos dias de hoje, esse limite ainda é adequado?

Não é adequado, mas ele é imposto pelas Nações Unidas, porque os países menos desenvolvidos não querem mudar. Estes países alegam que, como a expectativa de vida deles ainda é muito baixa, 60 anos já é uma idade avançada. Para as pessoas no Brasil que tem poder aquisitivo, acesso a comida e medicamentos, 60 anos é realmente baixo. Para outras, o nível de deterioração da saúde é muito mais rápido.

Os idosos, com tanta vitalidade, querem controlar a sua vida, gerir o seu patrimônio, casar-se… E a família muitas vezes interfere. Como se estabelece limite entre cuidado e controle?

Não se estabelece, pois não é uma questão legal. Uma coisa é independência, a outra é autonomia. O que é autonomia? É você viver de acordo com as suas regras, com seus desejos. Você determina a hora em que vai comer, a hora em que vai acordar, a que horas vai ao cinema, o que vai vestir, se quer namorar. Independência é ser capaz de desempenhar as atividades cotidianas. Ser capaz de comer, tomar banho, pegar uma condução, fazer suas compras e, de acordo com as regras culturais, fazer a sua comida – sozinho. Você pode perder a independência e manter a autonomia. Se você tem um derrame, fica hemiplégico, perdeu a independência. Mas se continuou com domínio cognitivo e tiver recursos, poderá estabelecer onde vai gastá-los. Neste caso, manterá a autonomia, pois continuará determinando como quer viver. Com o envelhecimento, o risco de perder a independência é grande, e lamentavelmente, o de perder a autonomia também. O grande problema da longevidade é a perda da capacidade cognitiva. Você deixa de poder gerir, por exemplo, sua conta bancária. Alguém vai ter de interferir, até para lhe proteger. Só que, com isso, há um risco grande de abuso: em vez de proteger, essa pessoa pode pegar o seu dinheiro e botar no bolso.

Além da qualidade de vida, o idoso precisa se preocupar com a qualidade de morte. Hoje existe a Diretiva Antecipada de Vontade, documento em que a pessoa pode afirmar como quer ser tratada em caso de doença incapacitante.

Na sociedade brasileira a morte é um tabu. Ninguém está preparado para lidar com ela. É uma conspiração de silêncio. Eu sou paciente e não quero lidar com essa coisa que me aterroriza; o médico também não quer, porque isso é pouco confortável e ele não foi treinado para falar de morte. Médicos, profissionais de saúde, legisladores que trabalham na área judiciária, ninguém é treinado para a coisa mais inevitável da vida: morrer. Só uma minoria ínfima faz uma Diretiva Antecipada e registra essas diretrizes. E você tem de espalhar, falar para todo mundo, ter um advogado perto, discutir com o seu médico, com a sua família. Mesmo assim, não há garantia total de que a diretiva será realmente cumprida. Quando o paciente entra em coma, o filho pode não achar que a diretiva é a certa. Mas eu recomendo a todo mundo ter muito claras suas diretrizes e um testamento também.

O mercado brasileiro ainda parece ainda muito tímido na oferta de produtos e serviços para os idosos. Por que as empresas não investem mais e melhor nesse segmento?

É um mercado que vai crescer, isso não me preocupa tanto. Desde fraldas e produtos para a pele até seguros, planos de saúde e cruzeiros. O setor imobiliário vai se dar conta, por exemplo, de que muitos idosos têm dinheiro para comprar imóveis. Vai ter oferta de apartamentos com cozinhas onde tudo seja mais plano, baixo, para evitar o risco de subir numa cadeira; com banheiros em que a porta abra para fora, de modo que, se o idoso cair, ela não bloqueie a passagem de quem vier socorrer. Os serviços vão aparecer à medida em que houver mais idosos com poder aquisitivo para comprar esses produtos. Eu me preocupo, sim, é com os milhões e milhões de brasileiros que já envelheceram e estão envelhecendo à margem, com um governo que não tem compromisso com os idosos. Precisamos ter muita seriedade para lidar com um desafio talvez sem precedentes na história do Brasil, que é um país envelhecendo muito rápido, em pobreza.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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