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Foto de Maria Claudia Coelho

Consumo e dádiva: uma linguagem das relações

Os CDs trocados no amigo oculto, o presente caríssimo que os pais têm de dar ao filho no Natal e os objetos de baixo valor em disputa nos processos de herança e separação fazem parte de um código de comunicação, que todos compartilhamos. Aqueles que não dominam essa linguagem colocam suas relações em risco. É o que explica a antropóloga Maria Claudia Coelho, diretora do Instituto de Ciências Sociais da UERJ e autora do livro O Valor das Intenções: Dádiva, Emoção e Identidade (Editora FGV). Nesta entrevista, a pesquisadora carioca comenta como hierarquias de gênero se expressam na troca de presentes entre marido e mulher; discute a sociedade de consumo e reflete sobre a hostilidade provocada pela dádiva que não pode ser retribuída. “O presente tem um potencial de insulto, como as palavras”, adverte.

Qual a importância do consumo na vida das pessoas?

O consumo é uma forma, entre outras possíveis, de você se apropriar de algo. Dádiva, herança, partilha de bens, leilão, roubo são outras. E tanto o valor quanto a forma de apropriação do objeto interferem no valor que o objeto tem.

Explica melhor?

A troca é o que instaura a sociedade. O consumo é uma forma de troca. A dádiva é uma forma da troca; o mercado e o Estado são outras. Quando eu pago imposto, e quero receber o serviço por isso, é uma troca. Só que essas três formas de troca seguem lógicas diferentes. No mercado, as coisas têm um valor, independente de quem compra. Uma xícara de café vai custar a mesma coisa para Rockfeller ou pra gente. No universo da dádiva, a equivalência é relacional. As coisas valem em função do quanto você pode dar. Se o seu filho, com seu primeiro emprego de estágio, ganhando R$ 1.200, lhe dá um presente de R$ 600, isso tem um valor extraordinário e completamente diferente de um presente de casamento do mesmo preço, dado por um padrinho milionário. A barganha também é relacional. Paguei hoje uma corrida de R$ 13,75 com uma nota de R$ 20. O taxista me deu R$ 7 em vez de R$ 6 — ou seja, ele me deu 75 centavos em vez de ficar com os meus 25. Ele está me dizendo alguma coisa. Fiquei pensando se não é uma reivindicação de status. Quando ele abre mão do dinheiro sem que eu peça, está me dizendo que pode prescindir daquilo.

Existe uma linguagem dos presentes?

Não aceitar um presente é uma hostilidade. Mas, quando você aceita, aceita também que tem de retribuir. Se eu lhe dou um presente que você não pode retribuir, reduzo você a um estado de dívida, o que, no limite, pode levar ao rompimento da relação. Hobbes fala do ódio que o presente que não pode ser retribuído pode provocar. A dívida pode ser um ônus insuportável, principalmente se a pessoa se representa como igual. E, quando eu dou um “presente que é a sua cara”, corro um risco enorme. Se eu suponho que você vai gostar de alguma coisa, estou dizendo como eu te vejo. Você pode não se ver assim. Ou seja, o presente tem um potencial de insulto, como as palavras. É um ato de comunicação.

Mas a dádiva não tem um papel positivo nas relações?

A dádiva é associada aos gestos que produzem vínculo, que produzem coesão. Mas, para isso, você tem de ser extremamente cuidadoso, ter uma competência, semelhante à competência linguística, para saber o que dar, em que contexto, de que valor. O valor na dádiva é um problema. Um diálogo típico é assim: você me convida para o seu aniversário e eu lhe dou um presente. Você diz: “Ah, que é isso, bobagem, não precisava”. E eu respondo: “Ah, que é isso, é só uma lembrancinha”. Nós duas desvalorizamos o gesto. A lógica da dádiva está em esvaziar o ato de qualquer interesse pelo valor de troca, porque na verdade o que está ali é o valor de vínculo. Só que eu não posso chegar no seu aniversário e dizer: “Adoro você. Como você sabe que eu te adoro, não preciso te dar nada”. Você quer eu materialize esse sentimento em um objeto. Porque é necessário esse objeto sensorialmente apreensível para que eu possa de fato transmitir a minha mensagem.

Como os presentes traduzem relações sociais, hierarquias e papéis de gênero?

Na minha pesquisa, entrevistei alguns casais. Para os homens, os presentes mais marcantes que haviam recebido de suas mulheres eram sempre de valor monetário ínfimo, mas dispendiosos do ponto de vista do tempo e do trabalho para consegui-los. Já os presentes que eles davam a elas eram objetos caros: um anel de diamantes, um carro, uma viagem. Isso é puro Marx – tempo e trabalho por dinheiro. Só que com uma distribuição de gênero muito nítida. Os homens dão dinheiro em troca do tempo e do trabalho das mulheres; as mulheres recebem dinheiro em troca de tempo e trabalho.

E no caso dos filhos?

Os filhos são uma das poucas categorias de relação para as quais você pode dar presentes em dinheiro. Na grande maioria dos casos, o universo da dádiva é refratário ao dinheiro, por ser impessoal. Em geral, não se presenteia dessa forma, a não ser excepcionalmente, como no caso de filhos ou netos.

Existe o risco de substituir por presentes materiais o empenho em estabelecer o vínculo de outras maneiras?

Isso incomoda a muitas pessoas. Tem gente que vê a obrigação de dar como um ônus. Pessoas que não dão presente no aniversário e no Natal e, sim um pouco antes ou um pouco depois, porque não suportam a obrigação de presentear naquelas datas. O que acho curioso é que elas presenteiam fora do calendário, mas com referência à ocasião. Dizem: “Estou te devendo um presente”. E aí entregam três semanas depois. Resgatam, com isso, uma dimensão de liberdade. Já o presente não retribuído cria uma dívida que, em princípio, é para sempre. A dádiva, assim como a dívida, vincula as pessoas. É diferente do mercado em que você entra, pega o que quer e, na mesma hora, passa no caixa e paga ou se compromete a pagar através de um cartão de crédito. Na dádiva é essencial haver um intervalo de tempo entre o presente e sua retribuição. Seria muito esquisito se eu chegasse no seu aniversário com um presente e você dissesse: “Espera aí, vou comprar alguma coisa para te retribuir”. O que esse intervalo de tempo faz? Se o centro da dádiva é produzir vínculo, é necessário que você aceite o estado de dívida provisório. Ao aceitar o presente e não retribuir imediatamente, você aceita ficar em dívida e eu aceito a sua proposta: você vai retribuir – no meu aniversário. Ambas, portanto, aceitamos estabelecer uma relação. Esse é o sentido da dádiva.

A própria vida também é vista como um presente: a mãe dá a vida aos filhos e por isso eles têm uma dívida eterna para com seus pais.

Sim. No sentido do vínculo sim, porque a mãe quis tê-lo. A coisa que a gente mais ouve de filho adolescente é a frase ” Não pedi pra nascer”. Com isso, ele rejeita a ideia da dívida, definida por uma troca da qual não participou. Esse diálogo pode ser pensado assim.

Embora trocas e presentes sejam práticas de criação e reiteração de vínculos, críticos da contemporaneidade alegam que nossa vida é excessivamente centrada num consumo artificialmente incentivado, em especial no caso das crianças. Diante disso, inclusive, o CONAR (Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária) decidiu regulamentar as propagandas infantis. Na perspectiva da dádiva, no entanto, dar presentes alguma coisa aos filhos também pode ser uma declaração de amor?

Eu tenho uma história sobre isso. Quando minha filha tinha cinco anos – hoje ela tem 20 – o brinquedo que todas as crianças queriam para o Natal era uma boneca que custava R$ 300. Na época, era uma fortuna. Eu, com esse meu envolvimento com trabalho, comecei a procurar um pouco tarde. E não achava o raio da boneca. Já tinha ido a um monte de lojas. E aí baixou uma angústia. Ela seria a criança que não teria a boneca no Natal. Então eu pensei: “Caramba, isto é a sociedade de consumo. A minha preocupação por ela está totalmente atravessada por esses códigos de que você é aquilo que você tem”.

Mas esse seria um valor especificamente ocidental e contemporâneo? Nas sociedades tradicionais, a vestimenta, a máscara, o colar, o cocar, também não marcam diferenças de status e posições sociais?

É preciso distinguir consumo de consumismo. Consumo, no sentido de que as pessoas se apropriam, usam e trocam bens materiais, existe em qualquer lugar. Consumismo – a definição da identidade a partir da aquisição de bens materiais – não. Nele existe uma dimensão de fantasia, de devaneio. Quando compro uma “havaiana”, eu me vejo em Fernando de Noronha. Se estou de férias e compro uma canga nova, eu já estou na praia. Essa experiência do ato da compra é diferente de conseguir a propriedade do objeto. E você pode abandonar no minuto seguinte o que comprou e adquirir outra coisa, para viver novamente essa experiência.

A herança também pode se constituir numa linguagem de afetos?

Com certeza. A legislação dispõe sobre algumas coisas: imóveis, carros, dinheiro. Mas não dispõe sobre um vaso. O valor do objeto transcende o monetário. A pessoa está no objeto. Minha filha fez um chaveirinho na escola e me deu. Em sala de aula, eu pegava o meu chaveiro e perguntava: “Quanto vocês me dão por isso?”. Era aquele silêncio na turma. Eu dizia: “Se alguém quiser ser muito caridoso vai dar um real, só para me tirar desse constrangimento. Mas eu responderia: nem por um milhão. Pois foi minha filha quem fez. Isso não tem preço”. Tem coisas que não são traduzíveis monetariamente.

E essas acabam sendo, muitas vezes, objeto de disputa. Como nas separações entre casais.

O que está em jogo, efetivamente, é a narrativa, a história por trás daqueles bens.
Os objetos são impregnados de um significado muito maior do que a coisa em si. Na verdade, é a relação que está sendo discutida através do dinheiro e dos objetos.

O ritual do Natal é construído em torno da troca de presentes, como símbolo da união familiar. Temos visto o crescimento do amigo oculto nessa festividade. Por que?

Richard Sennett, historiador americano, diz que a marca do mundo moderno é a descrença nas convenções. No mundo moderno, procuramos o sentido da vida na subjetividade individual e entendemos as convenções como mera formalidade. Só que elas são um código de comunicação. Sem elas, eu me arrisco a produzir mal entendidos e reduzir as possibilidades de comunicação. Essa rejeição a presentear nas datas é uma expressão disso. É como se sentíssemos que nossa expressão de afeto genuíno fosse maculada pela obrigação do presentear. Então, como você recria isso? Acordando uma nova regra. No amigo oculto, todos dão para todos. Ele reconstrói as trocas generalizadas. E tem uma regra muito clara: você dará um presente e ganhará um. Se todos respeitarem a regra, ninguém ficará sem presente.

E numa empresa, em um trabalho, onde as relações não são pessoais? Às vezes você precisa dar um presente para uma pessoa que mal conhece.

E isso pode criar vínculo. O amigo oculto, nesses ambientes mais impessoais, tem sempre uma faixa de preço. Como é dádiva, nunca é um preço, é uma faixa de preço. Você garante que ninguém será lesado com um presente muito abaixo do valor gasto nem humilhado com um presente irretribuível. Nessas circunstâncias, o que se faz, em geral, é escolher objetos que são destituídos das marcas associadas a papeis sociais: os livros, CDs e DVDs são os presentes mais comuns e podem ser trocados com facilidade. Não é muito diferente de dar um vale presente. E por que não dar um vale como presente? Porque, quando eu mesma compro o presente, estou dando algo além do objeto, que é o tempo e o esforço de escolha.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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