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Foto de Cesar Ibrahim

As crianças precisam de frustrações para crescer

Há mais de 30 anos o psicanalista Cesar Ibrahim atende crianças e adolescentes – além dos seus pais – em seu consultório. Dos anos 80 até hoje, assistindo às mudanças de padrões e costumes, ele aponta a fragilidade dos pais e a dificuldade de impor limites aos filhos como uma questão grave para muitas famílias. Palestrante requisitado e consultor de escolas, Cesar recebeu a equipe da série “Questões de Família” e adverte: é um equívoco dos pais ter como grande objetivo fazer a felicidade dos filhos. O risco é leva-los a uma adolescência tardia e produzir adultos incapazes de lidar com as frustrações.

A missão dos pais é fazer os filhos felizes?

Não me parece. Estou na clínica de adolescentes há mais de 30 anos e sempre pergunto aos pais o que querem para os filhos. Nos anos 80, os pais costumavam dizer: “Quero que filhos sejam pessoas de bem, com caráter reto, valores morais. A partir da virada do século, a resposta passou a ser: “Quero que meus filhos sejam felizes”. Estabeleceram como missão fazer da vida dos filhos uma vida feliz. Esse é um equívoco enorme. Porque, no afã de prover a felicidade, acabam promovendo exatamente o contrário.

Como assim?

A educação, fundamentalmente, pressupõe contrariar as pulsões mais primitivas da criança. Qualquer criança saudável quer a satisfação de seus desejos de maneira imediata e absoluta. A função da educação é exatamente se contrapor a essa onipotência infantil. Se a missão dos pais é fazer da existência dos filhos uma Disneylândia permanente, estão comprometidos com garantir para a prole uma existência sem frustração. Na infância, até podem conseguir. Mas, com o tempo, a criança descobre que o mundo não funciona como lhe prometeram em casa. É isso que tem produzido também a adolescência crônica, a adolescência interminável.

O que caracteriza essa adolescência tardia?

Cada um de nós conhece uma meia dúzia de exemplos: adolescentes com 28, 30 ou até mais de 35 anos, que jamais se tornam adultos em função de uma educação equivocada.  O que caracteriza a adolescência crônica é um estado psíquico que não reconhece a necessidade de ir na direção do desafio, da adversidade. Portanto, ela é subproduto dessa ideia equivocada de que a educação deve ser indolor.

E a infância, encurtou?

Não. Uma das maneiras de se olhar esse fenômeno é a partir da longevidade a partir da segunda metade do século 20. Saímos do final da Segunda Guerra com uma duração média de vida de 50 anos; hoje, há uma expectativa de vida em torno de 80. Isso fez com que não só a adolescência se alongasse, mas a infância também. Se, por um lado, as crianças aspiram por uma adolescência precoce, por uma vivência de sexualidade mais cedo e ganhos mais rápidos em termos de liberdade, por outro se mantêm dependentes dos pais.

Qual é a origem dessa atitude excessivamente preocupada dos pais com a felicidade dos filhos?

Vejo dois fatores: a cultura hedonista, que se acentuou especialmente depois da Segunda Guerra, e a diluição da autoridade e do patriarcado. A relação com os filhos na história da humanidade sempre foi verticalizada. O que ocorre agora é uma horizontalidade da autoridade. Diante de um não dos pais, a criança se coloca: “não, por quê?. E, curiosamente, os pais passam a dar satisfação. Claro, tem de haver diálogo na família. Mas a autoridade precisa ser resgatada, para que o indivíduo avance na construção do sujeito. A condição de sujeito só é efetivamente instaurada, do ponto de vista psíquico, na medida em que o objeto do desejo materno, o objeto do desejo do adulto, se submete à autoridade universal civilizatória. Para ganhar a carteirinha de sócio da civilização humana o indivíduo precisa pagar o preço altíssimo da renúncia aos impulsos. Além das mudanças trazidas após maio de 1968 e o avanço da cultura hedonista, com a emancipação feminina e o advento dos métodos contraceptivos, os filhos deixam de ser obra do acaso. Isso muda inteiramente a relação entre pais e filhos.

Como foi essa mudança?

O casal passou a primeiro investir na formação, na entrada no mercado de trabalho, na pós graduação. Quando tudo está arrumado, decide dedicar-se a um único filho, no máximo dois. Esses seres se tornam a razão da existência, aos quais os pais passam a se  devotar com o objetivo de cumprir aquela missão: a garantia da felicidade.

Então, o esforço de pais e mães de fazer o melhor pelos filhos causa o efeito colateral de criar filhos incapazes de lidar com a adversidade.

Exatamente. Desde 1989, o Estatuto da Criança e do Adolescente  consolidou a proteção da criança e do adolescente e a erradicação do trabalho infantil. Isso é muito bem vindo. Mas não se fala de deveres da criança. A relação entre prazer e dever é o fundamento da saúde mental. Qualquer forma de prazer: a alimentação, o videogame, mais tarde a sexualidade, é bem vinda, desde que regulamentada. O prazer tem de ter moldura. Essa é a grande dificuldade dos pais. Estabelecer moldura para o desejo onipotente dos filhos. Isso não é um problema que possa ser resolvido com ritalina, com antidepressivo. Essa é uma questão que dá muito trabalho. Colocar um adolescente para fazer o dever de casa ou mandar a criança desligar a televisão, o videogame, e dormir às 10 horas da noite, às vezes é uma tarefa quase que inexequível para os pais, muito fragilizados. Essa é uma questão emocional dos pais da contemporaneidade: a fragilidade diante da voracidade do desejo dos filhos.

O diálogo sempre é visto como o caminho para o amadurecimento, para o estabelecimento de boas relações. Por que às vezes o não tem de ser sem diálogo?

Assisti no consultório a um diálogo entre uma filha e os pais sobre ter álcool na sua festa de 15 anos, “Já que todo mundo bebe”. O álcool é contra a lei para menores. Então não vejo razão para os pais discutirem questões que são absolutamente indiscutíveis. Em geral, a questão que coloca os pais fragilizados é a pergunta: não por quê, já que todo mundo faz, já que todas as festas são assim, já que a cultura é assim, já que o mundo funciona assim? A resposta não deve ser uma discussão muito longa. Tem de ser muito simples, do tipo: “não, porque eu te amo”. A comunidade dos pais de uma maneira geral está pisando em ovos, como se pedissem licença para exercer a parentalidade.

Tem medo de parecer repressores.

Desde o golpe militar de 1964, repressão virou quase um palavrão. Mas Freud, quando tratou da ideia de repressão, estava falando de recalcar os instintos primários. A  contenção desses impulsos megalomaníacos, onipotentes, tirânicos, é pré requisito para a constituição da saúde mental. E quanto menos cerimônia você tiver em relação aos seus filhos, melhor, porque os filhos estão clamando por moldura. Estão clamando por contenção. Somos todos a favor de que eles tenham uma vida repleta de experiências intensas.  Mas, para avançar na direção de uma existência saudável, é preciso que eles estejam familiarizados com a inevitabilidade da frustração. A frustração é parte integrante do nosso cotidiano.

Pais querem filhos independentes, que sejam criativos e descubram o seu próprio caminho.  Muitos acreditam que, deixando-os mais livres, aumentam a sua chance de serem indivíduos autônomos.

É o contrário, é o caminho inverso. A palavra autonomia traz do grego nomos – norma, regra, lei — e auto  — a ideia de internalização da lei, internalização da regra. É o que, na psicanálise, Freud chamou de castração simbólica e  Lacan chama de destituição narcísica. Ou seja: pagar o altíssimo preço do acatamento da regra. Eu abro mão do meu desejo em nome da cooperação entre o conjunto de humanos. A questão que inaugura a civilização é a renúncia ao incesto. Se eu supuser que a realidade funciona à imagem e semelhança do meu desejo – o que é a tônica dos filhos tiranos hoje – não avanço para a condição adulta. A liberdade pressupõe um freio civilizatório que é extremamente doloroso.

Os pais estão delegando para a escola a tarefa de educar?

Trabalho com escolas e ouço muitas histórias. Os pais mandam bilhetes, recados dizendo: “Joãozinho ficou muito agitado, fez muita bobagem no fim de semana. Por favor, peça ao professor para conversar com ele para não desrespeitar a babá, não ficar até tarde…” E isso não é uma coisa extraordinária. É o que eu chamo de terceirização. As famílias supõem que, tendo pago a mensalidade, cabe à escola aquela educação essencial que é precípua da família. Confundem transmissão de conhecimento, que é uma atividade da instituição de ensino, com a educação de um ser humano.

E como as escolas vem lidando com a responsabilidade que lhes é atribuída  de criar limites?

O avanço do business na educação é assustador. As pequenas escolas estão sumindo e estão se tornando grandes conglomerados, com grandes investidores. A tendência da escola é estender essa tirania que os filhos exercem dentro de casa para a relação com os professores.

Por outro lado, muitos pais hoje são extremamente controladores.

Hoje de manhã fui a uma escola e fiquei esperando na entrada. Ao meu lado, uma mãe de um garoto de 11,12 anos, a toda hora falava: “Não esquece o casaco”. O menino ficava olhando pra ela como quem diz: “Para de falar.” E ela repetia: “Se estiver  frio na sala, coloca o casaco”. E ele: “Já sei, mãe, já sei”. Essa forma de cuidar do filho, mesmo amorosa, é inteiramente inadequada, não só pela idade, mas porque provavelmente a questão essencial está desatendida. Se ela estivesse trabalhando a autonomia, a internalização da regra, esse menino já seria competente para discernir o momento em que deveria colocar o casaco. Provavelmente a mãe não tem menor ideia do que ele está acessando na internet. Os pais supercontroladores são frequentemente omissos em questões essenciais.

Fala-se muito em depressão entre adolescentes e hoje muitas crianças são tratadas com medicamentos como ritalina.  Estamos recorrendo aos remédios para resolver os problemas das nossas relações?

Hoje temos múltiplas opções em todos os campos da existência humana: sexualidade, prazer, substancias químicas, formas de acasalamento, carreiras profissionais. Essa imensa liberdade traz como promessa a felicidade. Mas assistimos a um paradoxo: a profusão de possibilidades existenciais produz angústia – não direi depressão. Sentimos que, diante de tantas possibilidades de ser feliz, deveríamos encontrar uma. E a felicidade é veiculada pela mídia contemporânea como se fosse uma espécie de estado compulsório, que devesse ser alcançado por todos os humanos. Isso pode levar a esses eventuais estados de distimia [ estado crônico de irritabilidade e desânimo], que não necessariamente se constituiu em um quadro depressivo.

O consumo de drogas, especialmente a maconha, tornou-se muito comum. Muitas famílias, hoje em dia, admitem o uso em casa. Como o senhor vê a situação?

Um jovem adolescente fumar maconha na contemporaneidade a princípio não traz malefício significativo. Mas a questão não é se ele está fumando maconha. O álcool, a maconha a princípio são proibidos por lei. O papel dos pais é dizer: isso aqui é proibido. A gente sabe que vai haver transgressão, que vão tomar chope, que vão fumar maconha. Mas fumar maconha com os filhos ou liberar em casa é um equívoco extraordinário. Do ponto de vista simbólico você está alterando a relação do sujeito com a civilização.

Da mesma forma, pais permitem hoje que seus filhos vivam a sexualidade em casa já na adolescência. Como vê essa atitude?

Como disse, todas as formas de prazer, seja na infância ou na adolescência, são bem vindas, mas devem ser regulamentadas.  Como lidar com a sexualidade dos filhos, a permissão para que namorados e namoradas passem a noite em casa vai depender do padrão moral de cada família. Em qualquer dos casos, permanece a ideia de que a sexualidade seja regulamentada, dependendo do nível de maturidade.

Que tipo de pais serão os filhos que hoje não estão recebendo limites?

Isso não obedece uma lógica matemática. Filhos de dependentes químicos, que não puderam dispor de atenção e mesmo afeto conseguem constituir de uma maneira surpreendente uma estrutura psíquica pelo que a gente chama na psicanálise de contra identificação. Você se identifica pela admiração ou pela oposição.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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