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Foto de Ana Claudia Quintana Arantes

“A morte nos ensina a viver e amar em plenitude”

No ritmo agitado das grandes metrópoles, determinado pelas atribulações da vida familiar, a luta pelo sucesso profissional e o usufruto das recompensas do trabalho, muitos preferem ignorar a perspectiva da morte. Quando o fim chega, encontra-os despreparados para a dor. Médica geriatra formada pela USP e pós-graduada em Psicologia, a paulista Ana Claudia Arantes implantou e coordenou o Grupo de Terapia da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Albert Einstein. Hoje, além de formar médicos na especialidade, na Associação Casa do Cuidar, ela também se dedica a alertar diferentes públicos para a importância de refletir sobre a finitude humana, valorizando a morte como um marco que ajuda indivíduos a viver intensamente.  É este o assunto de seu livro, “A morte é um dia que vale a pena viver”(Leya/Casa da Palavra). “No final, o que vai contar não é o que se conta. A pessoa não morre feliz pelo que tem, mas pelo que fez”, adverte.

Por que a morte continua a ser tabu?

A dificuldade de falar sobre a morte é a dificuldade de falar sobre a vida. Muitos não vivem a vida que têm. Querem viver no futuro, pensam que a realização vai acontecer no amanhã. Só que o depois também reserva surpresas desagradáveis. Na verdade, não são surpresas, são acontecimentos previsíveis. A doença, o envelhecimento, o sofrimento, as perdas – tudo isso está previsto na vida, e você finge que não, que vai dar tudo certo. Mas, se tudo der certo, no final, você morre. Se tudo der errado, você também morre. O compromisso com a vida é algo de muita responsabilidade. Não pensar na morte faz o indivíduo abrir mão dessa consciência.

A aceitação da morte é mais difícil para os doentes ou para suas famílias?

Acho que para os médicos. A equipe de saúde tem uma dificuldade imensa de compreender o processo de morte como parte da natureza humana. As famílias sofrem por não terem sido expostas a este assunto antes que a doença se estabeleça na pessoa amada. É muito frequente ver, na porta de uma UTI, idosos chorando como crianças desamparadas porque o pai ou a mãe de 98 anos está morrendo. Como se isso nunca tivesse passado pela cabeça deles como uma possibilidade real.

Como uma pessoa deve se preparar para a morte? Em que momento isso deve acontecer?

A melhor hora para pensar sobre isso é no momento em que se faz um check-up. Toda vez em que você for fazer um check-up, tem de pensar: e se eu tiver uma doença grave, como vou viver minha vida? Quando você pensa que a sua saúde pode estar ameaçada, é o momento de pensar na morte e o que fará com essa notícia. A sua saúde não é eterna. Não pensar sobre isso não liberta o indivíduo da possibilidade de morrer.

E como abordar esse tema com a família?

Há um milhão de oportunidades. Vídeos e livros sobre o assunto podem ser o ponto de partida para uma conversa. Este não é um preparo para a morte, é um preparo para viver bem. Viver na integridade. Por exemplo, quando você ama muito uma pessoa, já começa sabendo que um dia vai acabar: ou vai acabar a relação, ou vocês vão morrer. E é por isso que você vai brigar menos, vai amar mais, vai viver cada momento de amor e de felicidade. O “para sempre” tira da gente a oportunidade de viver o hoje.

No aspecto prático, existem também as Diretivas Antecipadas de Vontade, em que a pessoa pode expressar como quer ser tratada em caso de doença grave.

As Diretivas Antecipadas de Vontade dizem respeito aos cuidados que você aceita ou não receber quando o seu corpo estiver em fase final de vida. Uma pessoa que descobre estar com uma doença grave, incurável, pode afirmar neste documento que não quer ir para UTI e nem ser entubada. Mas é preciso educar os familiares para que sustentem a sua decisão. Se você diz aos seus filhos:  “não quero ser alimentada por meio de sonda”, eles vão ouvir da copeira, nutricionista, médico, enfermeira, fisioterapeuta, vizinha, comadre e da tia: “Você vai matar sua mãe de fome ?”. E eles precisam ter uma resposta, como “Ela não vai morrer de fome, vai morrer de câncer. Ela não quer a sonda, e eu vou respeitar a vontade dela. A sonda não vai aumentar o tempo de vida da minha mãe, mas vai tirar dela a dignidade”. Por isso, é importante discutir em família a situação.

Você costuma dizer que na Medicina o médico não trata do paciente, trata da doença. Quando a doença é incurável, ele abandona o paciente. E no caso dos cuidados paliativos?

O cuidado paliativo é o cuidado de todas as dimensões de sofrimento da experiência humana de adoecimento: física, emocional, familiar, social e espiritual. Existe uma visão equivocada de que essa expressão significa parar tudo, interromper o tratamento do paciente:  “não tem mais jeito, faz um cuidado paliativo”. Isso não é cuidado paliativo. É má prática médica. O nosso trabalho é cuidar do sofrimento na hora em que aparece – não na hora em que se torna insuportável. É respeitar o sofrimento do outro e ajudar a pessoa a passar pela jornada que precisa cumprir. É um processo que une a humanidade do cuidado com a técnica.

Nos hospitais vemos, às vezes, uma falta de sensibilidade para a dor, para o sofrimento. Como se não fosse importante aliviar o sofrimento do paciente.

Quem tem esse comportamento não aguenta mais ter a dor que não é sua. Então, tende a se anestesiar ou naturalizar a dor. “Meu dia a dia é ver pessoas morrerem, é assim mesmo. É só mais um.” Mas por que que o profissional tem esse comportamento? Porque não foi treinado para lidar com o sofrimento. O estresse produz três respostas: a luta, a fuga ou o “freezing”, ou seja, ficar congelado. Em um hospital, as pessoas têm tanto estresse com o sofrimento do outro que, para suporta-lo, precisam se congelar. Esta  insensibilidade é fruto de um sofrimento muito grande do profissional.

Você diz que o sofrimento do paciente tem várias dimensões. Quais são?

A dimensão física é evidente e acessível a qualquer um. O problema de ser acessível é que muitos acabam naturalizando o sofrimento físico. É assim: “tá velho? vai sofrer mesmo. É normal, é a idade do condor“. O sofrimento emocional é a experiência humana frente à questão da fragilidade, e é absolutamente ímpar. Meu jeito de viver a tristeza é diferente do seu, pois a nossa dimensão emocional tem relação com a nossa história de vida. Uma doença que ameaça a vida é muitas vezes um momento de desintegração emocional. A reação, muitas vezes, é a negação. Na dimensão familiar, os sofrimentos emocionais são relacionados ao paciente, mas o paciente não tem controle sobre eles.

No seu livro você diz que o Brasil é um lugar muito ruim pra morrer. Por que?

A maioria dos brasileiros acredita em Deus e tem religião. Uma pesquisa feita pela revista The Economist e pela Kaiser Family Foundation mostrou que 40% dos brasileiros dizem que o mais importante, no fim da vida, é estar em paz com Deus. Só que, se tem um lugar terrível pra você morrer em paz com Deus, é aqui no Brasil. Não há profissionais qualificados nos hospitais, um capelão é muito raro. Além disso, no Brasil, você não morre de câncer, morre de dor. Temos um índice de consumo de morfina que, de tão baixo, é uma vergonha internacional. Em parte, por falta de consciência da necessidade do uso do medicamento  e pelo preconceito, da sociedade e dos profissionais de saúde, em relação ao remédio. Mesmo que você tenha acesso aos melhores hospitais. Não é só por ser pobre que uma pessoa vai ser maltratada; os ricos em estado terminal também sofrem. Sob certos aspectos, talvez até sofram mais.

Por que?

Porque eles têm acesso a uma categoria de médicos que ostenta a negação da morte com muito mais veemência, pois têm mais recursos. Então, prolongam o processo de morte de uma maneira cruel. O paciente vai para os Estados Unidos, gasta o que não tem. Mas não tem dinheiro que compre alguém para morrer no seu lugar. O processo da morte acaba sendo muito mais sofrido.

Você defende a eutanásia?

Eu respeito quem deseja e quem faz. Só que, na minha perspectiva, a morte é uma experiência sagrada. Quando você fala da eutanásia, está falando de uma morte planejada. E eu penso que uma das maiores belezas da experiência humana é a entrega para o não controle. A morte que me pertence, eu não controlo. Ela surge em mim. Ela nasce da minha vida e tem seu tempo. É um parto normal da alma. Não quero uma cesariana da alma.

Mas e uma pessoa que vive um processo degenerativo, está presa a uma cama, já não pode nem comer, e não vê sentido em continuar vivendo com esse sofrimento? A eutanásia não é uma escolha que preserva a dignidade do doente?

Não sou contra. Mas quero viver a experiência de morte dessa existência como parte da minha história. Isso, para mim, é dignidade. É receber cuidados paliativos, é minha família estar preparada para isso, para lidar com o tempo em que vou ter de estar de fralda, em que não vou conseguir me alimentar. E isso vai fazer parte da minha história. Minha história não é um prato de comida que não como, não é uma fralda suja. A minha história é muito maior do que isso. Eu quero ter a dignidade de me preparar para esse momento de fragilidade e isso não é uma vergonha. Quero que possam dizer: ” Olha como ela passa por isso com grandeza, com nobreza, com essa elegância toda”. Ou não. Eu também quero ter o direito de ter medo. De amarelar na hora. E quero que, à minha volta, as pessoas respeitem o meu medo. Vou passar por essa experiência humana e quero ser respeitada em tudo o que eu puder experimentar, e quero ser cuidada, porque o sofrimento insuportável é não ser cuidado.

Você saberia contar algum caso que exemplificaria isso?

Posso contar um monte de casos, mas teve um que vivi na pele: a morte da minha mãe. A minha mãe teve esclerose lateral amiotrófica, uma doença neurológica super grave. No processo de finitude ela recusou a sonda de gastrostomia. Cuidamos para que ela ficasse a mais lúcida possível e interagindo com a família. Todo mundo teve a oportunidade de encontrar minha mãe numa condição muito boa, muito confortável. O que trouxe um certo desafio, para todos os envolvidos, foi ouvir: “Mas ela está tão bem, vai desistir dela? Não vai tratar?”. Essa é uma percepção do cuidado paliativo bem feito. O paciente fica ótimo, mas está morrendo. Minha mãe era uma mulher muito católica. Ela pegava no meu pé porque eu não ia na missa. Dizia que eu tinha de comungar pelo menos na Páscoa. Ela  entrou em processo ativo de morte no dia de São José, que para os católicos é o protetor da família. Eu estava dando aula para estudantes de medicina e avisei minha filha: “fala pra vovó que eu vou chegar para dar um beijo nela”. Quando cheguei, ela estava com a família inteira em volta. O que, para ela, era uma coisa absolutamente fundamental. Falei: “mãe, cheguei”. Ela abriu os olhos, deu um sorriso e deu o último suspiro. Faleceu junto à família, no Dia de São José, e foi enterrada no Domingo de Ramos. A missa de sétimo dia foi na Páscoa. Eu estava me arrumando para ir à missa e disse para mim: “Mãe, você é muito danada! Conseguiu! Eu vou comungar ao menos na Páscoa!”. Fui rindo, como se ela estivesse do meu lado, dizendo: “Sou sua mãe, eu mando em você”. E isso é a kalotanasia. É a morte que coroa a vida, que dá sentido pra vida.

Como se pode ajudar as pessoas que estão em luto?

Primeiro, você não fala que vai passar, que foi melhor assim. Não fala para a pessoa ter fé. Não fala nada disso. Você olha nos olhos e diz: “meu coração está com você. Eu estou aqui para você”. Você fica do lado e diz: “se você precisar fazer alguma coisa  – compras no sacolão, pintar suas unhas, limpar a casa, levar o cachorro pra passear, fazer um mingau de aveia, qualquer coisa – eu faço, vou junto”. A pessoa só precisa saber que não está abandonada. Até o dia da morte da pessoa querida, todo mundo liga, a vida está intensamente tomada. No dia seguinte, ninguém liga, para não incomodar. Você cai no vazio da solidão e do abandono. Na verdade, as pessoas não ligam porque não sabem o que dizer.

O que a morte nos ensina sobre o tempo?

A morte ensina que o tempo acaba. E que ele é a coisa mais valiosa da experiência humana. E é a única coisa que a gente não sabe proteger. Sêneca  diz isso naquele pequenino livro sobre a brevidade da vida. O homem consegue defender tudo, menos o tempo, que é a única coisa que ele tem de fato.

Por que a morte é um dia que vale a pena viver?

Porque a morte faz parte da vida e a vida vale a pena ser vivida. A morte é uma ponte para uma vida maravilhosa, e eu não estou falando da vida após a morte, não. Se você pensa na sua morte, você atravessa uma ponte para uma vida incrível, que você nunca se deu conta de que poderia ter.

Como? Explica isso melhor.

A gente vai terminar essa entrevista e esse momento que passamos juntas nunca mais volta. Se eu não estivesse inteira aqui, não poderia viver esse momento na sua totalidade. Tendo consciência da morte, você olha para os seus filhos, você olha para seu companheiro, a pessoa que você ama, e fala: “Que incrível que você está aqui”. Que coisa incrível e maravilhosa esse momento de estar em casa às seis e meia da tarde. Que domingo lindo – e domingo não é ruim porque depois vem segunda. Domingo é lindo porque é domingo. E não volta mais. Essa percepção da vida que passa é tão bonita. Tem gente que só percebe isso quando tem câncer. Perceber isso antes é maravilhoso.

Entrevista concedida a Anabela Paiva

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